O que diz a legislação brasileira sobre o monitoramento de funcionários remotos?

Uso de ferramentas para monitoramento de produtividade cresceu na pandemia, mas é necessário transparência e cuidados para não ultrapassar limites

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10:46 am - 28 de janeiro de 2022
privacidade home office trabalho remoto trabalho híbrido Imagem: Reprodução/Shutter Stock

Apesar do avanço de campanhas de vacinação, a chegada da variante ômicron frustrou planos de organizações que planejavam um retorno às atividades normais. No Brasil, a situação não é diferente. Com novos recordes de casos diários sendo registrados, o trabalho remoto continua sendo a opção preferida por muitos no país.

Essa é a realidade com a qual empresas tiveram que aprender a conviver ao longo de 2020 e 2021 – e que deve se estender para bem além da pandemia. Resultados de uma pesquisa recente da Bain & Company, por exemplo, revelou que 30% dos brasileiros desejam continuar trabalhando no modelo de home office. Outros 33% preferem ainda um modelo híbrido, que mistura o trabalho remoto com dois ou três dias por semana no escritório. O estudo incluiu 2 mil brasileiros.

“Hoje não tem nenhum candidato que, antes de cogitar um desafio, não me pergunte se a posição é híbrida ou remota”, contou Marina Brandão, gerente de recrutamento da divisão de tecnologia da Michael Page, em entrevista ao IT Forum. Para a consultora, que tem ajudado empresas a navegar pela realidade atual do mercado na busca por talentos, os modelos flexíveis já se tornaram uma expectativa padrão de candidatos. “Se for completamente presencial, eles nem cogitam”, completou.

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Com a consolidação da realidade do trabalho remoto ou híbrido, organizações devem agora passar por um novo momento: revisar as decisões tomadas ao longo dos últimos quase dois anos e determinar se continuam adequadas.

Isso porque, para muitas, a migração de ambientes físicos para virtuais e remotos ocorreu de forma repentina, sem que políticas claras fossem definidas. A adaptação foi rápida, mas pode ter deixado lacunas ou inconsistências que, hoje, podem ser prejudiciais para os negócios ou até para a retenção de talentos.

“Muitas empresas ainda chegam sem noção da realidade do mercado”, afirmou a gerente da Michael Page. “É o que a gente chama de aftercare. Quando um funcionário chega na empresa, ele precisa receber todas orientações, todos os dispositivos para seu trabalho. A gente tem trazido informações para empresas para que elas não acabem perdendo profissionais para o mercado por um detalhe banal que poderiam ter mitigado anteriormente”.

Marina BrandãoMarina Brandão, gerente de recrutamento da divisão de tecnologia da Michael Page (Imagem: Divulgação)

Neste 28 de janeiro, data que marca o Dia Internacional da Proteção de Dados, um tema específico pede atenção: quais são as regras que regem a privacidade das informações dos trabalhadores remotos?

A discussão tem ganhado força ao redor do mundo e é motivada por outra tendência que andou lado a lado com o avanço do home office: o uso de ferramentas de software para o monitoramento de funcionários. Para Marina, o assunto ainda não ganhou tração no Brasil, mas já é realidade, principalmente por conta de multinacionais que atuam aqui e espelham suas políticas de monitoramento adotadas em outras regiões do mundo.

A consolidação do trabalho remoto e híbrido e a falta de um cenário específico de regulamentação no país, no entanto, pode tracionar o tema. “Não é um assunto que está sendo muito falado, mas acredito que vá vir com muita força neste ano”, opinou a gerente.

O monitoramento avança

Ferramentas para o monitoramento de funcionários não são nenhuma novidade. Usadas para garantir eficiência de fluxos de trabalho, produtividade ou até mesmo por questões de compliance, esses softwares são encontrados há anos em dispositivos corporativos dentro de escritórios.

A migração para um ambiente massivamente remoto, no entanto, trouxe uma nova escala para a prática. Sem a possibilidade de acompanhar colaboradores de forma presencial, muitas organizações adotaram ferramentas do tipo na tentativa aproximar seus times e lideranças, mesmo que virtualmente.

No Reino Unido, por exemplo, um estudo da Opinium realizado em nome do sindicato Prospect mostrou que 32% dos entrevistados estavam sendo monitorados por suas empresas. O resultado representou um aumento de 8% em relação a abril do mesmo ano. Entre os trabalhadores de 18 a 34 anos, a taxa chegou a 48%. E estudo foi rodado em outubro de 2021 com 2,4 mil trabalhadores do país.

Quando optam por soluções do tipo, organizações têm um amplo leque de possibilidades. Relatórios de produtividade que podem ser gerados, por exemplo, através de softwares como o Microsoft Teams. A solução de colaboração da Microsoft foi uma das que mais cresceu durante a pandemia, saltando de 75 milhões de usuários ativos em abril de 2020 para os atuais 270 milhões. Para gestores, o Teams é capaz de rastrear ações de funcionários através dos múltiplos aplicativos da Microsoft, incluindo e-mail, chat, reuniões, videochamadas e tempo total online.

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Há, no entanto, soluções que podem ser consideradas mais invasivas. Algumas destas ferramentas são capazes de realizar capturas de tela regulares, permitindo que gestores monitorem o que colaboradores estão vendo em seus dispositivos. Outras, utilizam webcams para tirar fotos dos funcionários e acompanhar o tempo que ficam no posto de trabalho.

Casos de uso como esse não costumam ser bem vistos por funcionários. Segundo o levantamento da Opinium e Prospect realizado no Reino Unido, 52% dos entrevistados defenderam que os empregadores não deveriam poder usar webcams para monitoramento. Do total, 28% afirmaram que o monitoramento via webcam só seria aceitável em cenários como reuniões ou com notificação clara sobre o uso.

“Monitorar é legítimo, mas você tem que ter uma régua”, avaliou Mariana Rielli, advogada e coordenadora geral de projetos da Data Privacy Brasil, em entrevista ao IT Forum. “Essa régua é considerar o que é proporcional, o que é necessário em determinado contexto. Que você não está fazendo um monitoramento indiscriminado, que teve uma reflexão prévia sobre porque isso é necessário.”

“É tipo o livro 1984”

Ouvido pelo IT Forum, Adriano (nome fictício para preservar sua identidade) convive há anos com o monitoramento constante de seu trabalho. O profissional trabalha no escritório paulistano de uma grande empresa do setor da comunicação. A estação de trabalho que opera é monitorada constantemente através de captação de imagens da tela.

Segundo ele, o monitoramento é utilizado para encontrar responsáveis sempre que um erro atrapalha o processo de produção diário da organização. “Para algumas pessoas, essa pressão afeta. Muitos têm crises de ansiedade”, contou. “Você já tem cobrança diária, a cobrança de horário, mas com ‘fulano’ vendo, observando, é tipo o livro 1984 [do autor britânico George Orwell].”

Conforme conta o profissional, o monitoramento é utilizado apenas no ambiente físico da empresa. Na máquina que utiliza quando está remoto, a empresa opera apenas com a solução Teams. Ainda assim, o ambiente corporativo controlado, disse Adriano, gera problemas que vão além da pressão cotidiana sobre os colaboradores.

“Se você precisa fazer uma reclamação sobre seu gestor, quer reclamar para o RH ou compliance, da sua estação de trabalho, você não pode fazer isso”, narrou sobre a preocupação que até mesmo temas não relacionados à produção cotidiana estejam sob vigilância. O resultado, ele explica, é um mal-estar generalizado por parte dos colaboradores. “Houve uma pesquisa de satisfação do setor e ela foi ruim”, contou.

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Hugo (também um nome fictício) é outro profissional do setor de tecnologia que teve que lidar com o monitoramento de sua produção ao longo de sua carreira, tanto no ambiente físico quanto no modelo remoto. Ao IT Forum, contou que uma de suas piores experiências de “microgerenciamento” foi em uma empresa de origem chinesa, em que precisava atualizar superiores de suas atividades de hora em hora.

“Eu me sentia extremamente controlado e, como profissional, extremamente pouco confiado por ter que ficar, o tempo todo, gerando evidências de que estava produzindo”, diz.

Hoje, Hugo é arquiteto de soluções em uma empresa estadunidense de tecnologia. No seu dia a dia de trabalho remoto, o profissional ainda precisa atualizar um software de tipo CRM com suas atividades cotidianas. A cada três meses, precisa também fazer um relatório mais completo, em que avalia os impactos de todas suas atividades.

Ele, no entanto, considera as dinâmicas de sua empresa atual “equilibradas”. “Quanto maior é o time, mas difícil ele é de gerenciar. Então olha o lado positivo: evitar que um recurso fique sobrecarregado”, exemplificou. “Se no relatório [a gestão] vê que alguém está trabalhando 12 horas por dia todos os dias, vai ver que está sobrecarregado. Ele pode estar em um grau de insatisfação alto, pode estar procurando outro emprego.”

Sua única reclamação, Hugo comenta, é não poder contar com um sistema automatizado para sua prestação de contas. “Enquanto isso não for automatizado, sim, isso me incomoda”, brinca.

O que diz a legislação brasileira?

“A gente tem a legislação do trabalho e todo o acúmulo da Justiça do trabalho, de muitos anos, que já lida com a questão do monitoramento no ambiente de trabalho”, explicou Mariana Rielli, da Data Privacy Brasil. “Você tem muitas decisões e visões consolidadas sobre o monitoramento de e-mail corporativo, que é considerado algo legítimo – obviamente guardadas algumas questões de proporcionalidade. Também o monitoramento por câmera no ambiente físico. Então você já tem uma discussão na esfera do trabalho bastante antiga sobre a ideia geral de monitorar funcionários. Isso é uma coisa que é considerada legítima a priori porque você tem a relação de subordinação.”

Segundo a advogada, no entanto, essa realidade tem se transformado com o avanço dos modelos de trabalho remoto e híbrido. “Quando você está no home office, a expectativa de privacidade e de intimidade é maior, já que você está na sua casa”, pontuou. “É uma relação diferente. Como vai ser esse monitoramento para não prejudicar a privacidade de outras pessoas que estão naquele ambiente e que não são suas colaboradoras?”, questionou Marina.

Veirano Flavia AzevedoFlávia Azevedo, sócia da área trabalhista da Veirano (Imagem: Divulgação)

Ao IT Forum, Flávia Azevedo, sócia da área trabalhista da Veirano, reconhece a expectativa de privacidade que pessoas têm em relação ao monitoramento de suas jornadas em casa. Segundo ela, no entanto, isso não necessariamente se reflete na legislação.

“Quando você tem um controle para saber que horas a pessoa começa a trabalhar, que horas a pessoa termina de trabalhar, quais são os intervalos, o quão produtiva ou improdutiva ela tá, isso não é um dado relacionado à privacidade”, explicou. “Apesar de parecer um controle que possa afetar sua privacidade, ele não é. É um controle meramente de atividade de jornada”.

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Discussões sobre quais seriam os limites dessa prática, ela completa, vêm se baseando em jurisprudências da Justiça do Trabalho sobre casos que têm origem em ambientes remotos. Um funcionário utilizando uma máquina dentro da rede do empregador, pode esperar que o conteúdo de sua navegação seja monitorado – desde que ele esteja ciente disso.

“Isso não muda quando acontece no home office. Se eu tenho um sistema de controle que verifica o tempo de navegação em sites que não sejam relacionados ao trabalho, ou que faça imagens da tela. A partir do momento que estou fazendo isso em um computador que é de propriedade do empregador e na rede do empregador, eu continuo sem a expectativa legítima de privacidade”, pontua.

BYOD, LGPD e outras complicações

Apesar de serem consideradas legítimas para empresas, há uma série de situações em que o uso de ferramentas de monitoramento cai em uma zona cinzenta. Exemplo disso é a coleta de imagens físicas do funcionário no ambiente doméstico.

Em ambientes corporativos tradicionais, o uso de câmeras é uma prática regulada – desde que, é claro, em ambientes em que não há expectativa de privacidade, como em banheiros. Esse cenário muda quando estamos falando, por exemplo, de uma webcam de computador dentro da casa do funcionário.

“Aquela imagem deixa de ser do espaço físico do trabalho e passa a ser uma imagem que pode, inclusive, capturar a casa do empregado, onde tem, sim, uma proteção”, relata Flávia, da Veirano. “Tudo isso é bastante novo”. Uma forma de contornar isso, ela cita, seria o uso de fundos de tela que ocultam os arredores do usuário do PC, um solução disponível em vários sistemas de videochamada, por exemplo. É importante também respeitar os momentos de intervalo garantidos por lei aos funcionários, que também não podem ser monitorados pelo empregador.

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Ainda sobre o uso de imagens, as especialistas ouvidas pelo IT Forum alertam para a necessidade de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados. Caso os dados de funcionários sejam tratados e/ou armazenados pela empresa, funcionários devem estar cientes. “Uma das preocupações que todo empregador tem que ter é ter uma cláusula no contrato de trabalho que trate da questão da privacidade de dados”, recomenda Flávia.

Por fim, outro complicador: o uso de dispositivos pessoais para rotinas de trabalho. “Isso é tão relevante que há muitas autoridades de fora do Brasil que fizeram recomendações específicas sobre o tema”, diz Mariana, da Data Privacy Brasil. “Quando você usa o dispositivo pessoal, você pode ter informações não relacionadas ao trabalho. Isso é complicado do ponto de vista da pessoa, que pode estar sendo monitorada em suas atividades pessoais, mas também do ponto de segurança”.

“A forma de você resolver isso vai ser sempre pela via negocial, que se reflete em um contrato”, afirma a advogada do escritório Veirano. “Eu [enquanto funcionário] preciso saber quais são os limites que estão sendo colocados no meu direito à privacidade”.

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