Se o seu emprego pode ser remoto, ele pode ir para outro país

Socióloga e professora Alexandrea J. Ravenelle estuda os rumos do mercado de trabalho e alerta: "não há área ou vaga segura"

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9:01 am - 07 de setembro de 2021

Ela queria ser jornalista, mas uma rápida investigação no mercado de trabalho fez com que Alexandrea J. Ravenelle mudasse seus planos. “Vi que aquela profissão estava se tornando uma grande plataforma de freelancer, e optei pela academia”, disse.

O que ela não sabia, porém, era que aquela primeira análise seria o começo de uma carreira brilhante. Hoje, socióloga PhD pela City University of New York, Ravenelle é uma das maiores investigadoras do mercado de trabalho, e compartilha suas descobertas com alunos na Universidade da Carolina do Norte e com o mundo, através de pesquisas e livros como o seu “Hustle and Gig”, publicado em 2019, onde aborda as técnicas de sobrevivência na economia compartilhada.

Em alta demanda por conta da pandemia que colocou tudo e todos em xeque, a professora pausou por alguns minutos sua agenda disputada para conversar conosco com exclusividade, e falou sobre o que nos espera no campo profissional.

IT Forum – Professora, a questão do “futuro do trabalho” é uma pauta que tem sido discutida à exaustão, mas não podemos fugir dessa pergunta: o que você acha que nos espera, profissionalmente, nos próximos anos?

Alexandrea J. Ravenelle – Essa é sempre uma boa pergunta, e eu acho que o futuro do trabalho vai depender muito da área onde cada um atua. Acredito que vamos continuar vendo o aumento da chamada gig economy, porque as pessoas vão buscar formas de complementar seus salários e zelar por suas poupanças, que podem ter sido dizimadas pela Covid. Aqueles que trabalhavam em escritórios e passaram a fazer home office, em muitos casos, vão continuar trabalhando remotamente, e é preciso ponderar que as oportunidades profissionais não voltaram ao nível pré-pandemia.

IT Forum – Mas uma pesquisa feita pela Federação Nacional de Negócios Independentes (NFIB, na sigla em inglês) diz que 44% dos pequenos empresários não estão encontrando mão de obra…

A.J.R. – Sim, e muita gente diz que isso está acontecendo porque os trabalhadores estão ganhando mais com o seguro-desemprego do que com o salário ofertado pelas companhias. Acho importantíssimo a gente entender que o desemprego não é lucrativo, mas que os salários são baixos. Algumas pessoas talvez tenham que voltar parcialmente ao trabalho, mas não vai ser a mesma quantidade de horas e nem vão ter a mesma renda de antes. Por fim, acho mesmo que vamos ver as desigualdades aumentar. O gap entre pessoas com ensino superior, os chamados “colarinhos brancos”, vai aumentar em relação aos demais.

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IT Forum – Essa desigualdade aí já era uma das maiores críticas à gig economy, né? Nós vemos nessas plataformas de trabalho freelancer gente aceitando tarefas de horas por US$ 5… nem sei o que pensar sobre isso, mas me parece que essa crise sanitária recente fortaleceu esse mercado “informal”.

A.J.R. – Pois então, uma das coisas mais curiosas que temos visto durante a pandemia, pelo menos aqui nos Estados Unidos, é o número de trabalhadores que transformaram aquele “bico” em ganha-pão. Ou seja, ainda que muitas políticas assistenciais tenham sido estruturadas para auxiliar quem perdeu o emprego, muita gente ficou excluída dos benefícios, seja porque estigmatizamos essas leis ou porque eles não achavam que eram elegíveis a essa ajuda, nos casos de imigrantes indocumentados. De qualquer forma, o grande desafio agora vai ser transicionar essa mão-de-obra que recorreu à gig economy de volta para os empregos formais.

IT Forum – Mas por que isso seria um desafio?

A.J.R. – Sabe, no meu livro “Hustle and Gig” (algo como “Trabalho e Bico”, em tradução livre), eu estruturei uma rodada de entrevistas com 18 trabalhadores informais e cerca de quatro anos depois refiz essas entrevistas com as mesmas pessoas. Eu descobri que aqueles que faziam bicos em plataformas como TaskRabbit ainda estavam “presos” naquele sistema. Perceba que muitos deles descreveram aquele serviço como algo temporário, e ainda assim, quatro anos depois, lá estavam eles fazendo a mesma coisa…

IT Forum – Consegue explicar esse fenômeno?

A.J.R. – Bem, é bastante difícil explicar para um empregador como fazer entregas pelo Uber Eats acrescenta algo ao seu diploma de Inglês que você quer usar para conseguir uma vaga de redator em uma revista ou agência de publicidade. Essa é uma das minhas maiores preocupações que eu tenho em relação à gig economy durante essa pandemia, porque temos visto uma debandada de trabalhadores recorrendo aos bicos e muitos descrevem ficarem “viciados” na chamada flexibilidade e ficam presos ali. Em alguns casos eu percebo a influência da retórica falaciosa “seja o seu próprio chefe”. Entendo que pode ser uma premissa atrativa, até porque se você pensar que tem total controle da sua agenda em vez de trabalhar horas a fio num supermercado, essa opção mais informal soa mesmo melhor. No longo prazo, porém, a estabilidade do emprego no supermercado tende a ser mais benéfica.

IT Forum – O que me preocupa aqui é o número de trabalhadores altamente qualificados desempenhando funções que dispensam a educação formal. Lembro que, em 2019, a Ivanka Trump (filha do então presidente Donald Trump) foi criticada por falar que nem todo mundo precisava de ensino superior e, ainda que eu reconheça os problemas da fala dela, temos que concordar que nem todas as profissões pedem quatro anos de uma faculdade cara… O que você acha?

A.J.R – Então, um dos mitos da gig economy é que ela é a válvula de escape para estudantes universitários ou alunos que desistiram do ensino médio. O que estamos vendo, na verdade, é uma porcentagem bastante razoável de trabalhadores que desempenham esses bicos têm ensino superior completo. Por conta de um estudo, entrevistei 200 gig workers nos primeiros meses da pandemia, de abril a junho de 2020. Agora estamos refazendo essas perguntas de acompanhamento junto a esses trabalhadores e, no outono, faremos uma terceira rodada de entrevista com essas pessoas. Estou surpresa com a porcentagem deles que têm diploma universitário: cerca de 36% dos nossos entrevistados são bacharéis e quase 20% têm pelo menos uma pós-graduação. Alguns deles são PhDs, doutores e afins. São pessoas treinadas para serem médicas, advogadas e acadêmicas, mas que estão desempenhando funções muito aquém de seu conhecimento técnico. Às vezes é porque não há muitos empregos e, em alguns casos, porque os empregos que lhes são oferecidos não abarcam a flexibilidade desejada.

IT Forum – Ouço muitos profissionais de tecnologia confessarem que escolheram essa área pela segurança, porque há muita demanda e, em geral, bem remunerada.

A.J.R. – Se tem algo que aprendemos com essa pandemia é que qualquer trabalho que envolva um computador pode muito rapidamente se transformar em um trabalho remoto. E se essas funções podem ser desempenhadas do conforto de um lar, esse lar pode ser também em outra cidade, estado e país. Então essa ideia de que existe uma carreira “segura” não é uma realidade no futuro. Um outro estudo que eu estou também envolvida é focada na elite da gig economy. São profissionais que trabalharam em empresas estreladas e agora trabalham em projetos, sendo pagos por hora, ou usam plataformas que lhes dão mais “liberdade”, mesmo por uma fração do salário. Essa, aliás, é a parte que mais me preocupa.

IT Forum – Como você bem disse, um trabalho remoto pode facilmente sair do país, e aí fica difícil concorrer com profissionais que moram em áreas com uma moeda mais desvalorizada, como Paquistão, Índia e por aí vai. O interessante, porém, é que há pouco tempo o CEO do Morgan Stanley disse algo como “se você quer um salário de Nova York, você então trabalhe em Nova York”. O que acha disso?

A.J.R. – Veja, os salários em Nova York são mais altos porque o custo de vida lá é igualmente alto. Se você quer que seu empregado tenha reais condições de trabalhar e não precise se desdobrar em múltiplos empregos ou enfrentar uma jornada de três horas para chegar ao escritório, você precisa pagar por isso. Assim, temos visto que algumas companhias estão tentando se adequar a isso, dizendo que, se você quiser trabalhar remotamente de um outro lugar, você pode, mas vai receber um salário que esteja de acordo com aquela região. Ao ver seu pagamento encolher, não sei, 15%, talvez você perceba que o montante já não é o suficiente para a boa vida que você planejava viver ali. Por outro lado, se não houver algum tipo de ajuste, poderemos ver em breve estragos em certas comunidades. Todos aqueles que vivem em áreas mais distantes do centro experimentarão um aumento considerável do seu custo de vida se esses indivíduos que estão ganhando 300 mil dólares por ano, de repente, se instalarem por ali e inflarem a demanda por serviços e moradia.

IT Forum – Ainda falando de trabalho remoto, muita gente se preocupa com a sua posição, porque, como falamos antes, ela pode ser facilmente direcionada a alguém que mora em regiões mais baratas e que aceitariam desempenhar a mesma função por um valor muito abaixo do praticado. O que você diria a quem está apreensivo e quer se manter relevante?

A.J.R. – Essa pergunta é muito importante e uma das coisas que observei ao estudar a elite da gig economy é que, frequentemente, os profissionais precisam ser marketeiros versáteis e conseguir enfatizar suas qualidades e talentos. Isso é até meio triste, porque coloca uma pressão adicional nos freelancers, que agora têm que expandir suas habilidade e fazer seu próprio branding. Mas a verdade é essa: no futuro, saber vender o seu próprio peixe será tão ou mais importante que saber pescar.

IT Forum – Estudar o mercado de trabalho é sua especialidade há tempos, consegue identificar o que tem levado à desvalorização do trabalho?

A.J.R. – Na geração passada, uma família era sustentada com o salário de uma única pessoa – geralmente o homem. Em muitos casos atuais, nem pai e mãe trabalhando dão conta do recado, e o sonho da casa própria fica cada vez mais distante para os jovens… Pois isso é parte de uma tendência antiga, cujas raízes estão fincado no final de 1960, começo de 1970, quando acontece o que chamamos de deterioração da relação padrão de emprego. Nos anos de 1700, 1800 e até meados de 1900, não era incomum as pessoas trabalharem de formas autônomas em fazendas e comércios. E então temos a Segunda Guerra Mundial e durante a sua recuperação a ascensão da relação padrão de emprego, que consiste em remunerar um trabalhador o suficiente para que possa sobreviver. Temos também um boom econômico, mas que não afeta todos os setores da sociedade de maneira igual, é verdade – ele é sobretudo sentido pelos homens brancos da classe média. Com o passar do tempo, vemos a deterioração dos sindicatos, sobretudo nos EUA, vemos menos proteções trabalhistas e mais fatores que tiram o foco da indústria e movimentam a economia do serviço e do capital intelectual. Tudo isso junto começa a enfraquecer a relação entre empregador e empregado. Com a fragilização desse vínculo surgem mais oportunidades para mulheres e minorias, e com isso o avanço da desigualdade, porque os trabalhadores deixam de ser remunerados da mesma maneira. Hoje é comum vermos pessoas com dois empregos, porque os salários não acompanharam o nosso tempo. O mercado de trabalho que estamos discutindo hoje não é o mesmo mercado de trabalho que vai receber os meus filhos, tampouco é o mesmo dos que recebeu os meus pais. Isso tudo vai ser um divisor de águas na forma como pensamos nossas carreiras e nos preparamos para ela.

IT Forum – Professora, você acha que é hora de ressignificar o trabalho? No Brasil, por exemplo, ainda vemos muito preconceito contra certas atividades…

A.J.R. – Como professora universitária, eu tenho a obrigação moral de defender que todos tenham oportunidade e acesso ao ensino superior. Ao mesmo tempo, sou obrigada a reconhecer que demos um peso exagerado ao diploma e olhamos com desdém para alguns serviços braçais. Ainda assim, são justamente esses serviços “precários” os mais difíceis de serem terceirizados. Quero dizer, eu posso facilmente contratar um programador de outro país, mas se eu precisar de alguém para desentupir a minha privada, não vai ser nada fácil encontrar um profissional que faça isso remotamente. É preciso de alguém ali, presencialmente. Enquanto conversamos aqui, vejo uma construção pela janela, do outro lado da rua. Nesta obra há dezenas de pessoas trabalhando e nenhuma delas faz home office. Acho então que, se a pandemia nos ensinou algo, é que há certas atividades que são absolutamente essenciais. Aconteça o que acontecer, ainda precisaremos de encanadores, eletricistas e mais. Espero que valorizemos cada vez mais os indivíduos que desempenham essas atividades, mas que isso não seja um obstáculo para que a universidade seja uma alternativa para todos. Porque, sabe, você pode ser muito talentoso com as mãos, mas pode ter uma mente ideal para aulas de literatura.

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IT Forum – Para além das cifras, como você acha que essa onda de home office impacta nossas relações?

A.J.R – Hum, essa é uma ótima pergunta. Claro, se estivermos todos trabalhando de home office, há uma grande desigualdade que se mostra. Por exemplo, eu sou uma pessoa meio bagunceira, e você pode ver isso pelo cenário onde estou inserida. Além do mais, estamos perdendo uma interação importante. Essa nova realidade vai acentuar as nossas diferenças, que estarão nos planos de fundo das nossas videoconferências. E não digo aqui só pela questão estética, mas será que todo mundo tem uma casa grande o bastante para não revelar a bagunça? Será que todo mundo tem um espaço silencioso e privativo? Será que todo mundo tem ar condicionado ou você vai suar em bicas enquanto fala com seus colegas, porque não tem como escapar do calor escaldante? Isso vai alardear algumas desigualdades que já sabemos que existem. E tudo isso tem uma carga mais pesada para as mulheres, que não apenas sofrem o impacto econômico, mas em muitos casos têm que incorporar o cuidado integral com a casa e com os filhos. Agora, com essas responsabilidades a mais, com os filhos no cenário da sua reunião por vídeo, como vai afetar a sua imagem perante os seus colegas? Será que muitos vão pensar que você está priorizando a maternidade, em vez do trabalho? É um desafio que todos nós vamos enfrentar.

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