Fernanda Caloi: mulheres precisam alimentar potencial empreendedor

Gerente de aceleração do Google for Startups fala de desigualdades no ecossistema e de programa 100% composto por startups de mulheres

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3:10 pm - 10 de março de 2021
Foto: Divulgação

O Google for Startups de São Paulo, espaço voltado para programas de estímulo ao empreendedorismo inovador e patrocinado pelo gigante de buscas, anunciou esta semana dez startups para o primeiro programa de aceleração (o Accelerator) do ano: Gupy, Safe Space, Justto, Datarisk, DealerSites, Hygia Bank, Redação Nota 1000, Manipulaê, Grão e Leads2b. Em comum, além dos nomes inusitados, todas têm o fato de serem lideradas por mulheres.

É um cenário bastante raro. Segundo um levantamento realizado pela Distrito, em parceria com a Endeavor e a B2Mamy, apenas 4,7% das empresas que compõe o ecossistema de startups brasileiro foram fundadas exclusivamente por mulheres, e 5,1% por mulheres e homens.

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As dez startups terão acesso, durante os próximos três meses em farão parte do programa, suporte e ferramentas para aprimorarem o uso de tecnologias como nuvem e machine learning, entre outras. Suas líderes também farão sessões de mentorias com especialistas do Google e de empresas parceiras.

“Já imaginou investidores perguntando a um homem CEO se ele quer ter uma família ou se pretende ter filhos? Pois muitas mulheres ouvem esse tipo de questionamento ao entrar em uma rodada de captação e isso não deveria acontecer”, diz Fernanda Caloi, gerente de programas do Google for Startups Brasil. Para ela, o Accelerator é uma forma de reduzir lacunas e injustiças que separam homens de mulheres no ambiente brasileiro (e global) de inovação.

O IT Forum entrevistou Fernanda para saber mais sobre a representatividade feminina no ecossistema de startups brasileiro e no Google for Startups.

 

IT Forum: Pela primeira vez uma turma do Accelerator conta somente com startups fundadas por mulheres. Foi difícil encontrá-las?

Fernanda Caloi: É inegável que o mercado do empreendedorismo tenha menos negócios fundados e liderados por mulheres. Essa é uma característica do mercado de trabalho, de forma geral, que se reflete no ecossistema de startups do Brasil e do mundo. Um levantamento da Associação Brasileira de Startups (ABStartups) revela que uma em cada quatro empresas não tem nenhuma mulher na equipe. Já o último relatório do Distrito mostra que apenas 4,7% das startups foram criadas somente por mulheres e que 90% foram fundadas exclusivamente por homens. Por isso, existe uma série de movimentos para diminuir o gap de gênero no ecossistema. Graças a uma evolução – ainda que tímida – das startups e suas estratégias para tornar os times mais inclusivos, foi possível fechar uma turma de startups em estágio avançado para o Accelerator.

 

IT Forum: No que o perfil das startups selecionadas agora difere das escolhidas em anos anteriores?

Fernanda: A diferença está apenas no fato de 100% das startups da turma serem lideradas por mulheres. No mais, a seleção leva em consideração se o negócio da empresa já está em estágio avançado e os desafios técnicos que precisa resolver para operar na sua máxima eficiência, sejam eles relacionados ao uso de Cloud, Machine Learning e/ou Ads, dentre outras tecnologias.

 

IT Forum: De modo geral há diferenças entre startups fundadas por eles e elas? Se sim, em quais aspectos?

Fernanda: Não vejo distinção entre as startups e a forma que operam, mas sim em relação às diferentes oportunidades que empresas fundadas por homens e por mulheres têm. Em um mercado majoritariamente masculino, o que acontece no ecossistema é reflexo dos problemas estruturais que enfrentamos na sociedade: por exemplo, as mulheres têm mais dificuldades de levantar investimentos do que os homens. O estudo mais recente do Distrito, em parceria com a B2Mamy e a Endeavor, revelou que os fundos de venture capital são majoritariamente liderados por homens. Outra pesquisa, realizada pelo Boston Consulting Group, afirma que as startups fundadas por mulheres têm, para cada dólar investido, resultados financeiros cerca de 50% maiores do que as fundadas por homens. Mas não há tanto espaço para aproveitarmos essas oportunidades. As empreendedoras enfrentam uma desconfiança maior e, por serem mulheres, recebem perguntas que um homem não receberia no processo de fundraising. Já imaginou investidores perguntando a um homem CEO se ele quer ter uma família ou se pretende ter filhos? Pois muitas mulheres ouvem esse tipo de questionamento ao entrar em uma rodada de captação e isso não deveria acontecer pois não importa o planejamento familiar da empreendedora para a análise da probabilidade do sucesso do negócio. E por aí vai.

 

IT Forum: Por que ainda há essa lacuna entre homens e mulheres que empreendem e inovam? É um problema global ou só brasileiro?

Fernanda: Entendo que seja um problema global. Um estudo da Crunchbase em 2020 indicou que os investimentos em empresas fundadas por mulheres representam apenas 2% do total, mesmo que haja um aumento de investimentos de oito vezes nos últimos dez anos. Além disso, percebemos que o acesso à capital também privilegia os homens. O valor médio levantado por fundadores homens é 16% maior que o valor médio levantado por mulheres, e quase três vezes mais startups fundadas por homens levantaram investimento, em relação às fundadas por mulheres. Isso acontece, repito, por um problema estrutural na nossa sociedade. Em muitos lares, a mulher é considerada a única responsável pelos filhos, pela manutenção da casa e por uma série de obrigações pessoais que fazem com que duvidem da sua capacidade de liderar uma empresa, reduzindo ainda mais as oportunidades. Também acho que o gap não vai diminuir se os homens não estiverem na luta ao nosso lado, elevando uma mulher quando está falando para um grupo, ajudando-a na sua carreira, cedendo espaço para que fale em uma palestra, entrevista etc. Enquanto não estivermos, todos, trabalhando para alcançar o mesmo objetivo, será difícil diminuir essa lacuna.

 

IT Forum: Em 2020 as mulheres passaram a representar 43% da comunidade do Google for Startups. Isso é mais que a média nacional, certo?

Fernanda: Está próximo à baixa média nacional. No Google for Startups, realizamos ações afirmativas para aumentar ainda mais esse percentual. A crescente é fruto de iniciativas e investimentos contínuos e focados nesses quase cinco anos de atuação. Além da nova turma do Google for Startups Accelerator em 2020, 50% da 5ª turma do Programa de Residência era de startups lideradas por mulheres, um fato inédito na história do programa. Ao longo de quase cinco anos foram diversas ações. Inauguramos no Campus o Family Lounge – espaço do nosso prédio dedicado para empreendedoras(es) acompanhados de crianças de até 3 anos. Realizamos o Launchpad Female Founders e o Campus for Moms, programas para ajudar mulheres e mães empreendedoras nas suas jornadas; além de colaborarmos com uma série de iniciativas de organizações relevantes no mercado, como a B2Mamy, com quem realizamos dezenas de programas e eventos. Também sempre tivemos a preocupação de garantir que os painéis e mesas redondas tanto dos eventos nos quais participamos, quanto que organizamos, tenham presença feminina.

 

IT Forum: Em comparação com outros campi pelo mundo, a proporção de mulheres aqui é maior ou menor?

Fernanda: O Brasil tem o maior percentual de presença feminina se comparado com outros campus do Google for Startups ao redor do mundo, em que esse número chega a 37% no máximo. Mas reforço que a diversidade e o aumento da representatividade de gênero e racial é uma preocupação do Google como um todo, como uma empresa que opera globalmente. No Google for Startups, não é diferente: os esforços para aumentar a presença feminina no meio da inovação acontecem aqui e no resto do mundo.

 

IT Forum: Como o Google for Startups pretende diminuir esse gap ainda mais? Que iniciativas estão planejadas?

Fernanda: Além da nova turma do Accelerator, vamos continuar apoiando iniciativas como as que citei e seguindo com esforços coordenados para avançar ainda mais rápido rumo a um ecossistema com oportunidades iguais para todos. O nosso processo de seleção para qualquer um dos nossos programas é pensado para ser inclusivo e garante que estejamos retirando as barreiras inconscientes para darmos condições iguais de mais mulheres chegarem às fases finais. O que nós queremos é que mais mulheres se sintam representadas e que a gente tenha mais nomes para nos inspirar, como temos a Cristina Junqueira, fundadora do Nubank, Ana Luiza McLaren, CEO do Enjoei, ou Paula Bellizia, ex-presidente da Microsoft e Apple no Brasil, hoje vice-presidente do Google.

 

IT Forum: Como incentivar mais mulheres a ingressar no mundo da tecnologia e do empreendedorismo de inovação?

Fernanda: O que posso sugerir é que as mulheres não se deixem desanimar por fatores impostos pela sociedade ou por ambientes que são ainda dominados por homens e que sigam em frente. Um estudo do IBCG revelou que as mulheres conseguem desenvolver uma visão mais completa do negócio, obtendo melhores resultados a longo prazo. Nós precisamos enxergar – e alimentar – o potencial empreendedor que há dentro de nós e não acreditar em quem diz que as mulheres não podem ocupar cargos de alta liderança ou empreender enquanto precisam cuidar dos filhos. Nós podemos escolher o que queremos ser e aonde vamos chegar.

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