Inclusão LGBTQIA+ nas empresas ‘deixou de ser tema acessório’

Para Ricardo Sales, fundador da Mais Diversidade, empresas fizeram agenda avançar, mas faltam políticas públicas relevantes

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6:11 pm - 22 de junho de 2022

Apesar do clima político-ideológico difícil (para dizer o mínimo) a respeito do debate sobre a inclusão de pessoas LGBTQIA+ no Brasil, desde a última eleição presidencial o tema cresceu substancialmente nas empresas brasileiras. Para Ricardo Sales, sócio fundador da consultoria Mais Diversidade e um dos especialistas mais reconhecidos no país sobre o tema, as empresas já reconheceram a importância do debate e estão avançando.

“As empresas deram uma demonstração do valor desse tema pelo protagonismo que ganhou na agenda”, diz o especialista. Não por acaso a consultoria, fundada em 2014 por Ricardo, tem excelentes perspectivas para o segundo semestre, que inclui expansão geográfica para além dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Há também planos de internacionalização.

“Queremos avançar na América Latina. Não existe [na região] uma consultoria com a nossa abrangência”, conta o especialista, que já atua, por meio de clientes multinacionais, na Argentina, no Peru, na Costa Rica, no México e na Colômbia. Mas o tema ainda tem muito por avançar, reconhece Ricardo, que compara os avanços e recuos do debate na agenda nacional como “uma valsa”.

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Em entrevista exclusiva ao IT Forum, o executivo refletiu não só sobre sua trajetória, mas também sobre o avanço do tema da inclusão de pessoas LGBTQIA+ no mercado de trabalho de tecnologia – e em outros setores.

Leia abaixo os melhores momentos do bate-papo:

 

IT Forum: Você atua desde 2005 com o tema da diversidade no Brasil. O que mudou nesses 17 anos?

Ricardo Sales: Atuando há tanto tempo pude ser um observador privilegiado das mudanças nessa agenda. A principal delas é que o tema deixou de ser acessório. Quando comecei [o tema] era trabalhado pelas empresas multinacionais, norte-americanas sobretudo. Mas não havia envolvimento tão grande das empresas brasileiras. De lá para cá o tema passou a ser estratégico.

A segunda [mudança] é a diversificação das pautas. Em 2005 havia uma tentativa de falar sobre mais temas, mas os assuntos principais eram equidade de gêneros e inclusão de pessoas com deficiência. A gente tinha dificuldade de falar do tema LGBT por conta do preconceito. Com o tema racial era a mesma coisa. Impossível discutir. A sociedade brasileira tinha uma ideia de democracia racial e de que o racismo não existia.

O tema cresceu muto, sobretudo nos últimos cinco [anos]. A gente pode afirmar hoje que a maioria absoluta das grandes empresas olha para esse assunto com preocupação legítima, porque sabe que é uma demanda dos acionistas e do público. E tem relação com a transformação da sociedade.

E de lá [quando começou a carreira] para cá o que costumo dizer é que é como uma valsa: dois [passos] para lá, dois para cá. Tivemos avanços muito grandes, mas ao mesmo tempo não suficientes, não chegaram para todo mundo. Essa é a sensação da valsa. Estamos caminhando? Estamos. Mas em uma velocidade que não é a mais adequada.

 

ITF: E como surgiu a Mais Diversidade?

Sales: Quando a gente é empreendedor é muito difícil dissociar o negócio da vida pessoal. A gente quer buscar soluções para problemas que existem no mundo e nós mesmos enfrentamos. Comigo não foi diferente. Venho de uma família muito simples, o primeiro que chegou na universidade, essas histórias que vemos muitas. Eu sabia que enfrentaria dificuldades. E no começo da carreira, até para me preservar, muitas pessoas diziam “não fale sobre isso”. “Falar da orientação sexual vai dificultar ainda mais sua vida”.

Eu reconhecia que as pessoas diziam isso como forma de cuidado, mas não fazia sentido, eu não podia renunciar ao que sou, é onde está minha maior potência, minha força. Foi aí que descobri a diversidade e a inclusão. Eu trabalhava na Caixa, que foi uma das primeiras instituições financeiras que trabalhou essa agenda.

Em 2005 quando o programa de D&I foi lançado, dei um jeito de participar. Quando chegou 2014, fui fazer mestrado na USP sobre a questão da diversidade nas organizações, quando não havia muita pesquisa sobre o tema. E aquilo me deu visibilidade. Não havia especialistas. E eu passei a receber convites para prestar consultoria, o que eu fazia no fim de semana, depois do expediente. Até que me encorajei e decidi que poderia ter um negócio e me dedicar integralmente a ele.

Para quem vem de família pobre e estava há 10 anos concursado com estabilidade não foi fácil. Mas eu entendi que não daria para ser de outro modo. Fundei a Mais Diversidade. Hoje apoiamos clientes tanto no Brasil como em outros países da região.

 

ITF: A consultoria é a principal atividade da empresa hoje?

Sales: Ainda é o carro-chefe. Mas temos uma área de educação corporativa, que são os wokshops, treinamentos, palestras. São 4 linhas: a consultoria, a educação corporativa, a área de pesquisas e estudo, e por fim a curadoria de talentos, que tem a função de conectar talentos diversos às organizações.

 

ITF: É aí que entram a Feira DiverS/A [eventos de empregabilidade voltados à comunidade LGBTQIA+]?

Sales: Aí entra uma outra frente, que a gente é muito inquieto. A gente entendeu há algum tempo que nosso trabalho é muito valioso, importante para a sociedade e deixando um legado. Também incompleto, no entanto. Como a gente trabalha majoritariamente com grandes organizações, para entrar [nelas] precisa ter no mínimo ensino superior cursando. E ok, é importante pensar em como incluir mulheres, pessoas negras, LGBT, PCD, que vão enfrentar dificuldade mesmo tendo ensino superior. Mas ao mesmo tempo e a multidão de pessoas que não tem essa escolaridade?

A gente decidiu nos últimos anos investir em frentes institucionais. Abrimos o Instituto Mais Diversidade, que é o braço social. O instituto até pelo fato de eu e meu sócio [João Torres] sermos LGBTs, entramos com esse foco olhando empreendedorismo, geração de renda e empregabilidade. E aí temos várias inciativas, uma delas a feira DiverS/A. Procuramos expandir a representatividade dentro da sigla, pensando em incluir pessoas LGBTs negras, trans, mulheres.

O evento aconteceu por dois anos virtualmente por conta da pandemia, e esse ano estamos no modelo híbrido. É uma alegria imensa, porque estamos fazendo [em 2022] em cinco capitais.

 

ITF: A indústria de tecnologia gosta de se considerar uma das mais inclusivas para a população LGTQIA+. Isso se confirma de fato?

Sales: Ela tem feito avanços. Várias são presididas por mulheres. Suponho que seja um dos mercados com mais mulheres em posições de liderança. Ao mesmo tempo sabemos que os desafios são imensos. Há milhares de vagas abertas em tecnologia, programação, e ao mesmo tempo uma dificuldade de preencher essas vagas, principalmente com diversidade.

Eu diria que o segmento de tecnologia tem feito avanços, mas também o financeiro. O Itaú é nosso principal parceiro hoje.

 

ITF: Que outros setores você destacaria?

Sales: Os mais atentos muitas vezes são aqueles que atuam no B2C, porque eles sentem o pulso do cliente. Quando se olha serviços, bens de consumo, eles sentem essa pressão saudável mais intensamente. Mas isso não é escrito em pedra. Indústrias químicas no Brasil fazem trabalhos bacanas: Basf, Bayer, Dow. São trabalhos de referência. Vejo isso como um contágio positivo. Quando no setor alguém avança, as demais empresas ficam com aquele incomodo, aquela competitividade saudável.

 

ITF: O crescimento do tema ESG aumentou a demanda das empresas sobre os serviços da Mais Diversidade?

Sales: Acho que para nós o desafio que se coloca agora é criar uma agenda “ESG à brasileira”. Isso não está estruturado ainda. Estamos nos valendo de recortes e experiências de países do norte, Europa e EUA sobretudo. É interessante, eles começaram a jornada antes de nós, mas ao mesmo tempo sem a lente brasileira podemos tomar decisões equivocadas.

O que seria uma agenda ESG à brasileira? Acho que o Social no centro da discussão. Claro que temos desafios ambientais que cresceram muito por conta dos desmandos da agenda federal, no entanto temos uma crise social que só se acentua. As notícias sobre a fome são assustadoras.

Na inclusão LGBT temos dificuldade de mensuração. É errado supor que não é mensurável, porque é. Tem que ir na frente qualitativa, liderança inclusiva, oportunidades de crescimento. Olhar para a sigla LGBT de forma mais ampla e interseccional.

 

ITF: Quando se fala em diversidade, que grupos você considera mais priorizados? E quais mais esquecidos?

Sales: É a valsa mais uma vez. Nos últimos anos houve muitos avanços, isso é importante reconhecer. Para todo mundo? Não. Porque ele [o avanço] está sobretudo concentrado em empresas grandes. E a maior parte da nossa população está nas pequenas e médias empresas.

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E a população transexual tem um histórico de vulnerabilidade muito grande. Preconceito dentro de casa, evasão escolar, acesso ilimitado a oportunidades. E não tem outro jeito que não ações afirmativas. As empresas precisam reconhecer o problema para tratar os diferentes de forma desigual. Isso é equidade.

 

ITF: O momento político atual atrapalha esse esforço de equidade? E o trabalho geral de diversidade e inclusão nas empresas?

Sales: Atrapalha de todos os modos. Primeiro como empresário, e nem faço distinção de segmento. Trabalhar com tanta imprevisibilidade é muito complicado. No nosso tema em especial as dificuldades se sobrepõem. Temos uma pessoa, eu nem chamo de liderança, no comando do País. Também não sei se comando é a palavra apropriada. Ela diariamente dá demonstrações contrárias a tudo que defendemos, que é o respeito, a equidade, as oportunidades iguais. O presidente da República faz troça com isso.

Isso dificulta sim porque as empresas não vão sozinhas mudar o mundo, elas têm que fazer a parte delas, mas não é responsabilidade exclusiva. A gente precisa de políticas públicas. É só o Estado que tem escala. O trabalho que faço com as empresas clientes é valioso, importante, ajuda a pautar a sociedade. Mas tem escala sempre limitada.

Mas desde a eleição [presidencial de 2018] a pauta parou? Não. Ela cresceu. O meio empresarial deu uma demonstração do valor desse tema pelo protagonismo que ganhou na agenda.

 

ITF: Para encerrar, queria saber quais são suas expectativas para o futuro. Você é otimista?

Sales: Digo que sou esperançoso. Me parece mais apropriado. Mas não no sentido de quem espera de forma passiva. Não existe alternativa para nós a não ser tomar decisões que vão moldar o futuro que a gente quer. Tomar essas decisões com respeito aos direitos humanos, que incluam e respeitem o ambiente. São os caminhos que vão nos fazer crescer como País. Estamos diante de uma oportunidade muito única.

O Brasil é um país super diverso, mas não inclusivo. Temos a maior floresta, mas etamos derrubando-a. Estamos caminhando para uma nova economia e temos condição de liderar, mas isso depende das decisões que serão tomadas. Tenho esperança que na eleição desse ano se eleja um projeto de governo com os direitos humanos, a democracia, o meio ambiente.

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Marcelo Gimenes Vieira

Editor do IT Forum. Jornalista com 12 anos de experiência nos setores de TI, telecomunicações e saúde, sempre com um viés de negócios e inovação.

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