A “sagrada” trindade 2.0: trabalho, política e inteligência artificial

Conversamos com o professor e autor Darrell West sobre a ressignificação do trabalho e a ética das máquinas

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9:54 am - 08 de junho de 2021
escassez de chips Darrel West. Foto: Divulgação

Falas pausadas, claras e na medida certa. Darrell West foi treinado para ser um porta-voz midiático, deixando quase nenhuma margem para improvisos. Esse comportamento “acadêmico robótico”, porém, é produto de uma vida de sabatinagem – coisa que só conhece e sente na pele quem se arrisca a escrever ou estudar sobre assuntos espinhosos.

No caso de West é uma mistura de política, tecnologia e sociologia, temas polêmicos que se encontram em quase todos os trabalhos assinados pelo docente, que em 2014 foi reconhecido pela Public Administration Review como autor de uma das 75 publicações mais importantes do mundo desde 1940.

Parece um título absurdo, mas é chancelado pela carreira de West, que foi professor da prestigiada Brown University e da John Hazen White, antes de assumir as funções que ainda exerce como vice-presidente da The Brookings Institution e como diretor do Centros de Estudos de Governança da mesma instituição.

Em conversa exclusiva com o IT Forum, Darrell West aceitou a quebrar sua narrativa para falar da pluralidade de suas investigações, sobretudo as que o levaram a publicar os livros “The Future of Work”, onde debate pontos sobre o futuro do trabalho em um mundo digital e o mais recente “Turning Point: Policymaking in the Era of AI” (algo como “Ponto da Virada: políticas públicas na era da inteligência artificial”, em tradução adaptada), que fala de como os algoritmos podem ajudar ou atrapalhar decisões governamentais.

Acompanhe a conversa completa.

IT Forum – Em entrevistas que você concedeu logo após a publicação do livro “The Future of Work”, em 2018, você dizia que nosso destino seria viver uma distopia ou utopia, a depender das nossas escolhas. Agora, que três anos se passaram, você acha que estamos mais próximos de qual caminho?

Darrell West – Bem, a crucial variável que determina se entraremos numa distopia e utopia é a política pública. Dito isso, o pessimismo ou otimismo das pessoas é um reflexo das respostas do governo, porque qualquer tecnologia vai ser disruptiva, vai tirar alguns empregos e criar outros. Precisamos treinar as pessoas e ensiná-las novas habilidades. Os países que estão se preparando para requalificar a mão de obra, na minha opinião, têm um futuro brilhante pela frente. O problema é quase nenhuma nação está fazendo isso, inclusive os Estados Unidos. Aliás, os EUA estão fazendo o contrário: um péssimo trabalho na requalificação das pessoas, o que me deixa pessimista. Não precisa ser assim, a gente poderia fazer melhor. Há diversas práticas e iniciativas que governos poderiam fazer para se preparar para a economia digital, mas a maioria não o faz.

IT Forum – Quais seriam essas políticas públicas? Como criar um sistema modelo que seja bom para a sociedade, mas também verossímil?

Darrell West – O modelo já existe e é centenário. Surgiu quando muitos países passaram de uma economia agrária para uma economia industrial. Na transição, a gente refez todo o contrato social. Então, nos Estados Unidos, por exemplo, desenvolvemos o programa de Seguro Social para cuidar das necessidades de renda dos idosos, eventualmente adicionamos o Medicare, que fornecia cuidados de saúde para os idosos, encorajamos a educação em massa, desenvolvemos seguro-desemprego, para que ninguém fique sem renda quando entre empregos, e, por fim, encorajamos as pessoas primeiro a ir para o ensino médio e depois para a faculdade. Essa acabou sendo uma fórmula vencedora e levou 20 ou mais anos para colocar todas essas políticas em prática, mas, eventualmente, as coisas deram muito certo. Estamos agora em um ponto de inflexão semelhante ao mudar de uma economia industrial para uma economia digital e isso representa os mesmos tipos de ameaças, mas precisamos refazer nossas políticas para ajudar as pessoas durante esse período de transição.

IT Forum – Arriscaria uma previsão a curto prazo?

Darrell West – O que já vemos acontecer é uma maior rotatividade de empregos. Isso significa que as pessoas pulam de uma oportunidade para outra, de uma empresa para empresa para outra e de um setor para outro. Assim, as políticas devem ser mais flexíveis para garantir que todos tenham algum tipo de renda, de assistência médica e de benefícios de aposentadoria durante esses períodos de transição. E isso significa que os benefícios precisam ser mais portáteis. Vamos ter que investir na aprendizagem ao longo da vida, porque no modelo antigo investíamos na educação das pessoas até cerca de 25 anos, e agora as pessoas vão ter que se requalificar aos 30, 40, 50 e 60…

IT Forum – Mas quem vai pagar por tudo isso?

Darrell West – Essa é a grande questão. Vivemos em uma era de altíssima desigualdade de renda e, por exemplo, o presidente Biden está dizendo que vamos pagar por isso tributando indivíduos ricos. Não vamos cobrar impostos de pessoas que ganham menos de 400 mil dólares por ano. O plano é aumentar os impostos do 1% ou 2% mais rico e há tanto dinheiro lá que é suficiente para pagar muitos novos programas sociais.

IT Forum – Você acha que essa transformação também vai impactar como nos relacionamos com o trabalho? Muita gente faz da profissão parte de sua identidade.

Darrell West – Precisamos redefinir todo o conceito do trabalho e, se você olhar para os mais jovens, eles já estão fazendo isso. Quer dizer, em pesquisas de opinião pública, indivíduos mais jovens querem um melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional do que o experimentado por outras gerações. A minha, particularmente, só trabalhou, trabalhou, trabalhou e não teve muito tempo para hobbies e interesses aleatórios. Essa nova geração quer isso, então a tecnologia pode, na verdade, permitir que as pessoas sejam mais produtivas, mesmo que trabalhem por menos horas – e, se fizermos a transição direitinho, teremos empregos melhores e não teremos que trabalhar até morrer.

IT Forum – Então você acha que haverá trabalho para todos, contrariando aquela previsão de que a tecnologia vai acabar com muitas oportunidades de emprego?

Darrell West – Pode haver empregos para todos se expandirmos nossa noção de trabalho. Por exemplo, há pessoas que desempenham serviços extremamente valiosos para a comunidade, como tomar conta de crianças, exercendo a maternidade ou a paternidade, cuidando de familiares idosos, se engajando em serviços comunitários, ensinando novos idiomas a ajudando outras pessoas a descobrir ou lapidar talentos e aptidões. Todas essas atividades são valiosas e benéficas para a sociedade, mas não chamamos nenhuma delas de trabalho, não as remuneramos e não oferecemos benefícios sociais a esses indivíduos. Dito isso, é preciso reconhecer que alguns países estão começando a testar essa expansão do conceito de trabalho oferecendo benefícios a quem desempenha essas funções essenciais para a comunidade. A premissa é que você não tenha que ter necessariamente um emprego tradicional para usufruir de coisas como assistência médica e aposentadoria, basta que desempenhe uma atividade que seja de uso e benefício da comunidade. Acho que é uma forma de resolver essa questão do trabalho, porque certamente muitos empregos serão extintos, seja no varejo, na área de finanças e outros mais braçais, como motoristas de táxis e afins.

IT Forum – Aqui voltamos a falar sobre políticas públicas, o que nos leva ao seu mais recente livro, “Turning Point”, que discorre sobre como a inteligência artificial tem sido usada nas decisões governamentais. Seria essa obra uma espécie de spin-off do seu trabalho anterior, sobre o futuro do trabalho?

Darrell West – Eu acredito que a inteligência artificial vai ser a tecnologia transformadora dessa geração, e ela está sendo utilizada em todos os setores: educação, saúde, transporte, comércio, defesa nacional e por aí vai. Em “Turning Point” tentamos focar menos em como o mercado de trabalho seria afetado pela tecnologia e mais nos aspectos éticos e sociais dela. Tipo, como você utiliza a inteligência artificial para o bem público? Como desenvolver uma IA responsável? Como criar uma IA que esteja de acordo com os valores humanos? Como garantimos que os princípios básicos de justiça, igualdade e transparência sejam incorporados nos algoritmos? Esses dois livros andam juntos, mas cada um tem um foco específico.

IT Forum – Depois de tantas perguntas, eu insisto em uma: como pode uma máquina ser ética? Porque um carro autônomo, por exemplo, é programado para proteger os passageiros, mas ele pode colocar em risco, em alguma situação extrema, pessoas que estejam ao redor.

Darrell West – Bem, nós ensinamos as máquinas a serem éticas nos certificando que as pessoas que as programam tomem decisões éticas também. Nesse caso de veículos autônomos, por exemplo, a gente já mudou o sistema para configurar-lo de forma que proteja a todos. Não quero dizer que não vai haver acidentes ou tragédias, até porque isso já acontece, mas o fato é que carros pilotados por computadores são mais seguros que carros pilotados por humanos, porque 90% das fatalidades no trânsito envolvem erro humano, seja por intoxicação ou distração mesmo.

IT Forum – Eu entendo que a preocupação nessa área seja menor, por conta da segurança…

Darrell West – Sim, eu me preocupo mais mesmo é com as aplicações em campos como finanças, emprego, educação e saúde, onde precisamos investir todo o nosso capital para garantir que o algoritmo não engaje em comportamentos injustos e chegue a conclusões equivocadas ou tendenciosas.

IT Forum – Como assim?

Darrell West – Por exemplo, na área de finanças, há muitas instituições que usam o algoritmo para determinar a avaliação de crédito de um indivíduo, avaliando se ele tem ou não condições de pagar um empréstimo. A questão, porém, é: seria o algoritmo capaz de fazer esse julgamento de forma justa? É uma pergunta empírica, porque a inteligência artificial pode ajudar a combater a desigualdade e injustiça, porque ela é capaz de avaliar dados em tempo real e nos dar insights sobre eles. Brancos e negros são tratados iguais, assim como homens e mulheres. Ainda que caminhamos para um lugar mais esperançoso nesse sentido, há diversos desafios éticos pela frente e há muito o que fazer para tornar a tecnologia mais segura e justa.

IT Forum – E porque você fala de um o “turning point”, um ponto de virada?

Darrell West – Estamos em um ponto de virada porque estamos vendo um monte de novas tecnologias se desenrolam simultaneamente. Não é apenas uma tecnologia em foco, são 10, 20, 30 ou 50 acontecendo ao mesmo tempo. Portanto, você tem IA, machine learning, análise de dados, computação quântica e supercomputação, apenas para citar alguns. Tudo isso basicamente vai acontecer nos próximos cinco anos e impulsionar a inovação de maneiras que vão surpreender as pessoas. Tipo, nós pensamos que porque temos internet há 30 anos, já vimos muitas das novas tecnologias, e isso simplesmente não é o caso. Haverá muitas coisas novas surgindo nos próximos anos porque os recursos são muito mais fortes do que o que tínhamos antes e, portanto, nossa capacidade de construir aplicativos sobre essas novas plataformas também vai se acelerar. Então, o ritmo da inovação tecnológica realmente vai aumentar, e o que isso significa é que não temos cinco ou dez anos para descobrir esses problemas. É como se tivéssemos que descobri-los agora, porque se esperarmos cinco anos, é tarde demais. Quero dizer, uma vez que a tecnologia é lançada no mundo, torna-se muito mais difícil controlá-la novamente nos trilhos e proteger quem embarca nela. Temos que fazer isso agora.

IT Forum – Muita gente teme que, quanto mais usamos a tecnologia, mas desumanizamos os processos. O que você acha disso?

Darrell West – Precisamos de maior engajamento público, de vigilância pública e regulamentação pública. Veja, nos últimos 30 anos a gente basicamente delegou todas as decisões importantes sobre a tecnologia para empresas privadas. Há pouquíssima regulamentação governamental tecnológica no mundo. Quando escrevemos o “Turning Point”, argumentamos que a era da “permissão livre” está chegando ao fim. Aposto que, daqui pra frente, veremos mais vigilância pública para garantir que os algoritmos estejam fazendo as coisas certas e respeitando os valores humanos, a fim de nos tornar melhores, não piores. Então eu acho que o ponto central é ajustar a regulamentação. Na área da finança, é só garantir que estejamos incorporando informações relevantes e as analisando de maneira ética e igualitária.

IT Forum – Mas como podemos ser mais vigilantes e, se for o caso, peitar grandes as big techs se elas muitas vezes são maiores que o próprio governo?

Darrell West – Bem, Ford e General Motors dominaram por décadas a indústria automobilística e nós deixamos com que essas duas empresas fizessem carros da maneira que quisessem, e acontece que esses veículos não eram seguros e muita gente morreu por isso. Então, como sociedade, começamos a regulamentar esse setor. Nós estabelecemos que cintos de segurança seriam obrigatórios, que era preciso ter airbags e que outros tantos recursos de segurança deveriam ser incorporados de fábrica. Estamos nesse mesmo ponto em relação à tecnologia digital. Você está certa quando diz que as companhias privadas estão desenvolvendo a tecnologia, mas temos meios para lhes dizer que essas tecnologias têm que servir os valores humanos. Não pode ser injusta ou tendenciosa. Precisamos entender como as decisões estão sendo tomadas e o tipo de dados que estão usando. Há muitos exemplos históricos de avanços que primeiro criaram problemas, e aí entramos com regulamentações para tentar preservar os benefícios, enquanto minimizamos os efeitos colaterais negativos.

IT Forum – Para fechar essa conversa sobre inteligência artificial e políticas públicas, queria pedir para que compartilhasse conosco um case que possa servir de exemplo ou inspiração.

Darrell West – Acho que há diferentes casos de sucesso nas áreas de meio-ambiente e sustentabilidade, porque a tecnologia foi usada de muitas maneiras para gerar energia limpa, prédios mais eficientes e outras tantas criações que promovem os valores ambientais. Por exemplo, alguns prédios verdes estão sendo construídos com sensores automáticos, para que apague as luzes e diminua a potência do aquecedor ou ar condicionado caso ninguém esteja presente. A internet já está sendo usada de muitas maneiras que, acredito, a maioria avaliaria como positiva. Para usar um exemplo mais recente, queria acrescentar ainda que o desenvolvimento recorde da vacina contra a Covid-19 é também fruto da tecnologia – e isso é ótimo.

IT Forum – Bom, já que você mencionou a pandemia, você acha que ela mudou ou pelo menos acelerou uma das mudanças que você aborda em “Turning Point” ou no “The Future of Work”?

Darrell West – A pandemia acelerou a inovação tecnológica em todas as áreas. Mudanças que aconteceriam, talvez em cinco anos, foram desenvolvidas em cinco meses ou até cinco semanas, porque as pessoas tiveram que mudar para o aprendizado online, a telemedicina, o trabalho remoto e o comércio eletrônico. Foi literalmente uma questão de dias para todos incorporarem novos hábitos digitais, porque não tínhamos escolha. Muitas dessas mudanças agora vão se tornar uma característica permanente da paisagem. Tipo, não vamos voltar a um mundo sem videoconferência, pois o fato de você e eu podermos nos comunicar por meio de videoconferência é ótimo e, obviamente, continuará no futuro. Portanto, há uma série de mudanças pandêmicas que as pessoas foram forçadas a fazer que vão persistir e o objetivo é garantir que persistam de maneiras construtivas e não destrutivas.

 

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