‘Toda inovação tem dois lados’, alerta Marcelo Gleiser no IT Forum@Home
‘Nobel da Espiritualidade’ lembrou avanços e dilemas éticos da tecnologia, e destacou papel da educação para desenvolvimento do Brasil

Todo cientista e criador de tecnologias, assim como aqueles que as aplicam nas empresas e corporações, precisa ter em mente: toda inovação tem dois lados, e pode tanto abrir portas e facilitar o progresso como criar grandes problemas sociais. Essa foi a mensagem deixada pelo físico e escritor Marcelo Gleiser na plenária de encerramento do IT Forum@Home, realizada na noite desta sexta (23). Guilherme Pereira, head de inovação e professor da FIAP, também participou da plenária.
O cientista – que é professor da Faculdade de Dartmouth, nos EUA, e ganhou em 2019 o Prêmio Templeton, concedido pela Fundação John Templeton e apelidado de “Nobel da Espiritualidade” – reiterou que a aplicação da tecnologia também envolve uma responsabilidade moral “muito maior do que a gente imagina”.
E citou Buda: “Onde existe luz, existe sombra. Como criadores e pessoas que adaptam tecnologia para empresas, precisamos entender que essa função dual também existe. Toda inovação tem dois lados.” O prêmio foi concedido pela capacidade do físico em aliar conhecimento científico com questões de natureza espiritual e moral.
Gleiser também é professor de filosofia. E lembrou que é importante, nesse momento de transformação digital acelerada, pensar nos grandes impactos da adoção tecnológica sobre o mercado de trabalho e sobre a sociedade como um todo. E antecipar os efeitos negativos para não ter que lidar com eles a posteriori, ou seja, quando talvez já seja tarde.
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“A intenção de inovar casada com o crescimento ético é que vai realmente criar um mundo que pode ser melhor do que esse em que vivemos agora”, ressaltou Gleiser. “A inovação não pode ser desacoplada de uma intenção moral em que é respeitada a diversidade, a diferença cultural, e vozes que nem sempre casam com as nossas também devem ser ouvidas.”
Um desses efeitos duais mencionados pelo cientista pode ser observado justamente em revoluções industriais anteriores. Se por um lado aumentamos a produtividade de nossas fazendas e transformamos matérias-primas diversas em avanços que aumentaram drasticamente nossas expectativas de vida, por exemplo – e que recentemente nos permitiu até testar um helicóptero em Marte! –, por outro nos fez destruir florestas e aumentar drasticamente a temperatura no planeta.
“Esse crescimento industrial incrível que trouxe mais qualidade de vida tem um preço não só gigantesco como destrutivo e irreversível”, disse Gleiser. “Existem certas consequências da aplicação desenfreada e dessa vontade de querer mais, que sempre foi lógica da civilização industrial que mudou o mundo, e só agora estamos acordando para entender.”
Para o filósofo, não adianta colocar a culpa nos homens e empresas do passado, e agora é importante entender o que está acontecendo para que a gente se possa preparar o mundo do futuro e pós-pandêmico. Ecoando Ailton Krenak em sua plenária de quinta, Gleiser acredita que a pandemia nos mostrou que “não dá para nos separar da natureza, estamos integrados” e que “esse negócio de achar que estamos em uma cidade de pedra” que nos isola de processos naturais “não é verdade”.
Efeitos negativos e controles
O professor de Dartmouth citou alguns exemplos de avanços atuais que exigem cuidados. Primeiro a manipulação genética, possível através de uma técnica criada recentemente e chamada CRISPR (sigla em inglês para Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas). Trata-se de uma técnica que permite manipular o genoma de uma célula, “recortando” partes específicas e suprimindo características indesejadas no indivíduo.
Com ela é possível, por exemplo, eliminar doenças genéticas. Mas é um avanço tecnológico que pode ser tão benéfico quanto perigoso. Ao ponto de uma das criadoras da técnica, a bioquímica e bióloga molecular estadunidense Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia, demonstrar preocupações públicas sobre os seus usos futuros.
“Primeiro ela conta [no vídeo abaixo] que linda é a descoberta, que coisa fantástica ela como cientista ajudar a aliviar o sofrimento humano. Obviamente milhões de pessoas sofrem com doenças genéticas, e essa característica tem o potencial, já demonstrado na prática, de resolver alguns problemas”, disse Gleiser. “Aí o vídeo volta para a Jennifer no final. Ela conta que teve um sonho. Ela teve um pesadelo.”
Eugenia, ou eugenismo, foi uma teoria popular no fim do século XIX e início do século XX e que julgava ética a seleção de características genéticas em indivíduos para promover supostas melhorias em sociedades humanas. Serviu para justificar barbaridades como a esterilização em massa de pessoas com deficiências físicas ou mentais pelo regime nazista, por exemplo. Daí o sonho da cientista americana.
Outra combinação tecnológica que exige cuidados e citada por Gleiser é a de automação robótica com inteligência artificial. Não no sentido de que as máquinas vão nos subjugar no futuro como em um filme de ficção científica, mas na medida em que ela altera drasticamente o mercado de trabalho e, sim, vai gerar desemprego.
“Muita gente que tem trabalhos menos ligados à tecnologia vai se tornar obsoleta. Quando se tem carros, caminhões, ônibus e aviões autônomos, o que vai acontecer com caminhoneiros, motoristas de uber etc?”, questionou. “As empresas que estão desenvolvendo esse tipo de tecnologia não estão se preocupando. Vai sobrar para os países e as sociedades [lidarem com o problema].”
Negacionismo e subversão
Gleiser também lembrou que, assim como os homens, a ciência é imperfeita. Mas a grande vantagem dela em relação a outras formas de conhecimento e fé humana é que ela “reconhece que é uma representação imperfeita”. O método científico cria teorias que nunca são absolutamente conclusivas, e nenhum trabalho ou modelo é perfeito.
“A ciência reconhece seus limites”, disse. “A ciência vai se aprimorando à medida que o tempo vai evoluindo. É uma narrativa que vai se autocorrigindo. Todo líder corporativo deveria ter isso em mente.”
O físico concorda que uma das imperfeições da ciência – e dos cientistas – é a arrogância. Isso talvez contribua com a onda de anticientificismo que entrou recentemente em evidência por meio de movimentos como os terraplanistas e o antivacina (antivaxers). Como, então, acolher pessoas que se sentem excluídas dos avanços científicos e tecnológicos?
“A gente pode fazer educação”, disse Gleiser, salientando que a comunidade científica precisa criar espaço para quem se sente ameaçado, o que não significa “aceitar a visão de mundo de um cara que diz que a terra é plana.”
Para o cientista, movimentos negacionistas tem um caráter anárquico e autodomínio. Conforme a ciência foi tomando conta da vida das pessoas, diz, elas se sentem ameaçadas. Combater o problema exige que os cientistas se esforcem para ir a público e criar canais de diálogo. Coisa que a internet facilitou: Gleiser tem um canal no YouTube com pouco mais de 180 mil inscritos em que tenta democratizar a ciência e a filosofia de forma acessível.
Para ele, missão que também pode ser compartilhada com lideranças empresariais.
Educação transformadora
No debate com Guilherme Pereira, especialista em inovação e diretor acadêmico da FIAP, Gleiser também ressaltou o papel da educação e da ciência para a inovação no Brasil. Disse que preciso mudar as estruturas de ensino brasileiras para a multidisciplinaridade seja privilegiada, ao invés da superespecialização.
“A maioria dos problemas atuais são interdisciplinares”, disse. “Não dá para fala de inteligência artificial em uma empresa só com o pessoal de computação. Tem que falar com o pessoal de recursos humanos, o pessoal de ética, o jurídico. Mas se você só conhece um caminho não sabe falar com outras pessoas e isso destrói a capacidade de diálogo e inovação.”
Pereira concorda, e acha que o a academia precisa fazer um mea culpa. O processo de aprendizado, disse, se transformou muito pouco ao longo do tempo e não privilegia a criatividade, tão presente nos primeiros anos de vida de uma criança e drasticamente reduzido na adolescência.
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“Isso é reflexo da nossa forma de aprender. Nos engessamos demais e nos reinventamos muito pouco”, disse. No esforço de mudar essa lógica, a FIAP, entre outras coisas, aboliu um item clássico em qualquer curso de graduação: o TCC, que passou a não ser mais exigido dos alunos e se transformou em projetos de empreendedorismo.
Para Gleiser, o Brasil está atrasado no caminho da transformação por meio da educação. Enquanto países como Índia e China não mediram esforços para trazer de volta cientistas formados nos EUA, e que hoje são professores em universidades locais, o Brasil não consegue estancar a fuga de cérebros.
“Quando eu comecei [minha carreira] aqui [nos EUA, onde mora], os chineses e os indianos vinham para ficar. Agora eles nem vem mais. O nível educacional lá é tão alto que eles não sentem necessidade de vir pra cá”, disse Gleiser. “O Brasil? Não está nem pensando nesse tipo de possibilidade. Isso condena o Brasil a ter 300 mil vagas abertas no setor de TI.”
Para Gleiser, falta às autoridades e decisores brasileiros uma visão de mundo em que a ciência é agente transformadora da sociedade. “Enquanto não houver isso vamos continuar com vagas pra preencher e uma economia baseada em extração”, sentenciou.