Paulo Artaxo: indústria de TI é chave para conservação do planeta

Para o professor, mais que ferramentas de medição de impactos, setor precisa se engajar em novo modelo econômico sustentável

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11:15 am - 31 de agosto de 2022
Paulo Artaxo. Foto: Marcos Santos, Agência USP

Paulo Artaxo pode ser considerado uma sumidade da ciência brasileira atual. Membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (o IPCC), das Nações Unidas, e professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), o cientista é presença frequente em bibliografias de trabalhos sobre clima e sustentabilidade em todo o mundo.

Conhecido pelos estudos relativos ao meio ambiente, especialmente relacionados à Amazônia, às mudanças climáticas e ao aquecimento global, Artaxo tem se tornado uma das mais importantes vozes na defesa de um novo modelo econômico, que alie desenvolvimento econômico e preservação. Em entrevista exclusiva ao IT Forum, o professor foi enfático sobre o papel da indústria de tecnologia da informação na preservação do planeta.

“Estamos passando por um momento histórico muito importante, associado com as mudanças climáticas globais e esgotamento dos recursos naturais do nosso planeta”, disse o especialista. “A indústria da tecnologia da informação é obviamente uma das indústrias-chave nessa questão.”

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Segundo o físico, empresas de tecnologia são responsáveis por oferecer ferramentas de medição de impactos ambientais aos cientistas e órgãos intergovernamentais, além de atores importantes nos debates sobre o papel das indústrias na conservação do planeta.

“A ciência mudou muito, e dependemos fundamentalmente da análise de gigantescas bases de dados de satélites, observações de superfície, de modelagem, para poder incluir essas variáveis em um desenho por exemplo da sustentabilidade da Amazônia”, exemplifica o cientista.

IT Forum: Qual o papel da tecnologia da informação nos seus trabalhos atuais? De que forma ela permite acompanhar melhor a evolução do impacto do homem sobre o meio-ambiente?

Paulo Artaxo: É fundamental perceber que sem modelamento por computadores, na verdade supercomputadores, nada disso com que a gente trabalha hoje na questão das mudanças climáticas poderia ser feito. Na verdade, nós dependemos 100% do tratamento de grandíssimos bancos de dados, ambientais, na questão da modelagem. E assim por diante. Hoje a questão ambiental e climática se tornou tão complexa que não são só as informações ambientas e climáticas que entram em jogo. Todas as questões socioambientais, associadas com a saúde, com os limites planetários e por aí a fora, todos são ingredientes essenciais para traçar o caminho que a humanidade está indo do ponto de vista da sustentabilidade do nosso planeta.

IT Forum: E que ferramentas você usa para lidar com essas imensas bases de dados?

Artaxo: A gente usa uma série de ferramentas, desde modelos mecanísticos simples até modelos climáticos globais que rodam nos maiores supercomputadores do nosso planeta. Dependendo da problemática do projeto, das questões cientificas que se tem que responder, se usam ferramentas diferentes. Desde modelos climáticos regionais, por exemplo na Amazônia, até modelos de poluição de área urbana no entorno da cidade de São Paulo, que a gente roda com resolução espacial de um metro, por exemplo. Até modelos clima ticos globais que trabalham com resolução da ordem de 100 km, mas para toda superfície do nosso planeta.

IT Forum: Esse nível de detalhe não seria possível até poucos anos atrás.

Artaxo: Nos últimos 20 anos tivemos um avanço enorme na questão da modelagem climática exatamente por conta do avanço computacional. O curioso é que hoje esse avanço já é suficiente, e o fator limitante não é mais a capacidade computacional, mas a entrada desses dados, a assimilação nos grandes modelos. Os dados gerados por satélites são de uma quantidade brutal a cada segundo sobre nosso planeta. A problemática não se trata mais do uso de supercomputadores, mas sim o que se pode fornecer de dados para os modelos que já existem.

IT Forum: Extrair valor dessa enorme quantidade de dados disponíveis também é um problema para as empresas, embora no caso delas tenha relação com dados de negócio. É um problema generalizado?

Artaxo: Veja, eu não chamaria isso de um problema. Não é um problema. O cerne da questão é jogar no modelo um conjunto de dados que sejam suficientes para que o problema seja resolvido para um determinado conjunto de algoritmos. Tem que olhar a questão como um todo, desde o começo das perguntas que se quer responder, aos dados disponíveis para responder aquelas perguntas que se tem em mãos, com os algoritmos e modelos que se vai trabalhar, com a resposta final que é o seu interesse. Tem que olhar essa cadeia de uma maneira completa, não só os dados de entrada. Os dados de entrada dependem da resposta que você quer na saída desse processo complexo como um todo.

Hoje a problemática principal não é ter os dados de entrada, mas sim na verdade conseguir integrar essa estrutura de Big Data, como a gente chama hoje, que ocorre em todas as áreas de pesquisa. Em economia, geografia, meio ambiente, nas questões sociais, ambientais, geotécnicas e assim por diante.

IT Forum: Aproveitando o gancho, há uma multidisciplinaridade intrínseca aos dados. Isso tem preocupado as empresas, que tentam trazer gente de várias áreas para analisar dados e desenvolver tecnologia. Essa multiplicidade é importante?

Artaxo: Não é importante, é essencial. A divisão que nossa sociedade faz, por exemplo, sobre química, biologia, ciências sociais e economia, é totalmente artificial. Foi feita nas nossas universidades. O mundo real não conhece essas diferenciais. Ninguém vai perguntar para uma bactéria se o que ela está fazendo pertence à área de biologia, física ou química. Isso não existe. A ciência hoje é totalmente multidisciplinar.

Voltando para antes da Renascença, quando se tinha cientistas como Newton ou Da Vinci, que na verdade não eram médicos, físicos ou biólogos, eram cientistas. Ao longo dos últimos 100 anos a departamentalização das disciplinas prejudicou muito o conhecimento científico. Estamos vendo hoje um retorno a multidisciplinaridade. Analisando que as fronteiras do conhecimento estão na verdade na interface entre as disciplinas como um todo.

IT Forum: Pensando na indústria da tecnologia da informação, ela participa dos mesmos debates e fóruns que o senhor, seja propondo soluções ou fornecendo ferramentas? Ela está preocupada com o próprio impacto sobre o planeta?

Artaxo: Sim. Você vê muitas indústrias de grande porte como Amazon, Microsoft, etc e tal, evidentemente pensando na sustentabilidade do próprio negócio, em sua pegada ecológica, consumo de energia, que hoje se traduz em custos por exemplo. Você vê isso principalmente nas grandes empresas. Nas de menor porte a coisa é muito diferente porque não tem uma escala. Mas está caindo a ficha que vai haver negócio no futuro que não seja sustentável se não levar em conta seus impactos ambientais e socioeconômicos na nossa sociedade.

Estamos caminhando para o cumprimento dos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável e qualquer indústria vai ter que se alinhar para a sustentabilidade inclusive para conseguir sobreviver na próxima estrutura socioeconômica que está sendo montada nesse momento. Estamos passando por um momento histórico muito importante, associado com as mudanças climáticas globais e esgotamento dos recursos naturais do nosso planeta, e a indústria da tecnologia da informação é obviamente uma das indústrias chave nessa questão.

IT Forum: Chave como, pensando sob um ponto de vista mais prático?

Artaxo: Sendo uma das ferramentas para que a gente possa encontrar estratégias mais eficientes sobre como vamos lidar com a sustentabilidade do nosso planeta. Sem ter as ferramentas que a TI nos dá hoje seria absolutamente impossível fazer um diagnóstico, por exemplo, do futuro socioeconômico do planeta. Por exemplo: vamos ter água para disponibilizar para 10 bilhões de pessoas em 2050? Vamos ter alimentos? Dependemos de tecnologia de informação para obter as respostas. E cada vez mais o tratamento de Big Data vai se tornar mais importante.

Pegando a questão da Amazônia como um todo. Há 30 ou 40 anos atrás, uma pessoa sozinha em seu computador pessoal conseguiria fazer uma boa ciência. Hoje isso é impossível. A ciência mudou muito, e dependemos fundamentalmente da análise de gigantescas bases de dados de satélites, observações de superfície, de modelagem, para poder incluir essas variáveis em um desenho por exemplo da sustentabilidade da Amazônia.

IT Forum: O senhor mencionou que estamos passando por um momento histórico de mudança. Talvez o senhor escute muito essa pergunta, mas farei mesmo assim: estamos fazendo essa mudança a tempo? Ou é tarde demais?

Artaxo: A resposta se é tarde ou cedo demais depende de onde se quer chegar. Tarde demais para que? Essa pergunta não tem uma resposta única. Estamos caminhando para um aquecimento global do planeta da ordem de 3 a 4 graus. Isso vai trazer impacto socioeconômico monstruoso, mas também está ajudando a sociedade a perceber que nosso modelo de desenvolvimento socioeconômico é insustentável mesmo a curtíssimo prazo. Ele vai ter que mudar, gostem as indústrias ou não. Mas ninguém tem no bolso do colete a solução para onde. Isso vai ter que ser construído pela sociedade como um todo, com todos os ingredientes possíveis.

Não vai ser tarefa fácil. Nós vamos ter que resolvê-las e vamos resolvê-las! Por uma razão muito simples: não temos alternativa. Ou resolve ou resolve. O problema é que não temos muito tempo, a degradação planetária está indo a um ritmo sem precedente nos últimos milhões de anos. E a nossa sociedade está destruindo sua própria casa. Isso é sério, tem implicações importantes não só para gerações futuras, mas também a nossa própria. É urgente encontrarmos um caminho onde possamos desenvolver uma economia mais justa, com menos desigualdades sociais, mais sustentável, respeitando os limites do nosso planeta e da nossa sociedade. Isso ainda terá que ser construído.

Quanto tempo vai demorar? Ninguém sabe. O que a gente espera é que essa década de 2020 a 2030 seja chave para essa questão. O que vai acontecer com uso de energia e destruição de florestas tropicais nessa década vai ser chave com o que vai acontecer com o planeta até o fim desse século. É bom a gente se preocupar, acelerar essa transição que já está ocorrendo, mas de maneira muito lenta, e com isso construir uma nova sociedade mais sustentável e mais justa.

IT Forum: Sua resposta me faz supor que não existe dilema entre desenvolvimento econômico e sustentabilidade.

Artaxo: Não há possibilidade de não haver essa conciliação. Nós dependemos disso. A economia do planeta inteiro depende de serviços ecossistêmicos. A chuva por exemplo, a regulação térmica, e vai por aí afora. Essa interdependência é mais do que total. O que precisamos fazer é que isso seja sustentável a médio e longo prazo para que todos os 10 bilhões de pessoas que vão habitar o planeta até 2050 tenham alimentação, fornecimento de água, igualdade de gênero e assim por diante.

IT Forum: Estamos em um momento delicado de questionamento sobre a ciência, com muito negacionismo etc. Fazer ciência hoje é mais difícil? Ou por outro lado existe uma valorização maior do fazer científico?

Artaxo: Observamos um crescimento de governos de extrema direita nos EUA e Brasil que tentam negar o valor da ciência quando as conclusões vão contra seus objetivos econômicos e ideológicos. Ou seja, só vão contra a ciência quando vai contra eles. É o mau uso da ciência. Isso está crescendo, infelizmente, porque os governos de extrema direita perceberam que poderiam enganar a população. Temos que combater isso melhorando nossos instrumentos de comunicação com a população em geral. Eu dou muito mais palestras hoje para a população em geral, empresas e órgãos governamentais do que cinco ou 10 anos atrás. Isso acontece com todos os cientistas. É um indicativo de que ter acesso confiável às informações científicas é bom para qualquer pessoa.

* matéria publicada originalmente na edição 26 da revista IT Forum

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Marcelo Gimenes Vieira

Editor do IT Forum. Jornalista com 12 anos de experiência nos setores de TI, telecomunicações e saúde, sempre com um viés de negócios e inovação.

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