Mães na tecnologia: estratégias de acolhimento geram valor, mas precisam ser personalizadas

Mães e especialistas falam sobre estratégias para tornar empresas mais receptivas para quem equilibra maternidade e vida profissional

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7:30 pm - 06 de maio de 2022
mãe tecnologia

Na luta pela equidade de gênero e por mais diversidade no mercado de trabalho, profissionais que são mães enfrentam inúmeros desafios. Em uma pesquisa realizada em abril deste ano com 400 trabalhadores de todo o País, a Ticket, marca de benefícios da Edenred Brasil, revelou que 52% das mães respondentes já sofreram algum tipo de preconceito no ambiente profissional por terem filhos. Entre os homens com filhos, apenas 15% deram a mesma resposta.

Esses preconceitos se manifestam de diferentes formas. Das mães participantes, 41% relataram problemas quando precisaram se ausentar por conta de compromissos envolvendo seus filhos. Segundo elas, esses episódios geraram reclamações, questionamentos sobre sua capacidade profissional ou, até mesmo, demissões. Um quarto (25%) das respondentes do sexo feminino também disseram acreditar que ausências por questões que envolvem filhos podem atrapalhar seu crescimento profissional.

“Há uma constante luta por igualdade de gênero no mercado de trabalho, em equiparação salarial e oportunidades de crescimento profissional, e alguns aspectos deixam isso ainda mais evidente e merecem atenção por parte da área de recursos humanos. Essa diferença de tratamento que existe entre mães e pais é muito negativa para o mercado como um todo, pois pode desestimular talentos femininos e impedir o seu crescimento”, pontuou José Ricardo Amaro, diretor de recursos humanos da Ticket.

Com uma trajetória de mais de 30 anos na indústria de tecnologia, Vânia Gomes se recorda dos desafios vivenciados como executiva do segmento e mãe de três filhos. Hoje cofundadora da proptech UBlink, Vânia atuou por 26 anos na IBM Brasil, alcançando o cargo de diretora estratégica de alianças. “A gente vinha de um mundo extremamente machista. Eu fui a primeira mulher a me reportar diretamente para um presidente da IBM no Brasil, nós não tínhamos muitas executivas mulheres”, disse em entrevista ao IT Forum.

Ao longo de sua carreira, enfrentou dificuldades para equilibrar a vida profissional e a maternidade. Um dos episódios que mais a marcou, conta, foi quando perdeu uma comemoração de dia das mães da escola de sua filha. Na época, a executiva havia assumido responsabilidades em Miami, e não pode comparecer ao evento por conta de uma viagem.

“Meu marido foi sozinho e só havia um outro pai sozinho, cuja esposa havia falecido. Minha filha não entendia e ficou perguntando se eu também havia morrido, porque a referência foi essa”, contou. “No ano seguinte, eu estava em reunião, mas deixei avisado. Levantei no meio da reunião e saí. Eu tinha um compromisso com a minha filha. As pessoas precisam entender que há certas coisas que são importantes para a família. Você precisa estar ali. Isso não quer dizer que vou deixar de fazer meu trabalho”, completou.

Acolhimento é essencial

Ainda que enfrentem diversos desafios e preconceitos no dia a dia de trabalho, mães atuantes na indústria de tecnologia ouvidas pelo IT Forum reconhecem que avanços têm sido promovidos por empresas para melhor acolhê-las. Da possibilidade de se adotar rotinas de trabalho flexíveis a treinamentos internos para conscientizar equipes e lideranças das necessidade de profissionais que são mães, as iniciativas citadas foram diversas.

A consolidação do modelo de trabalho remoto durante a pandemia da Covid-19, no entanto, é a mudança que mais tem impactado positivamente essas profissionais. Segundo dados de um estudo da Korn Ferry, de novembro passado, 85% das empresas nacionais adotaram um modelo totalmente remoto durante a pandemia. Há também aquelas que surgiram durante a pandemia – e já surgiram no modelo remoto.

“Se não tivéssemos adotado o home office desde o princípio, eu não sei se teria sido possível empreender assim, começando do zero”, contou Deborah Palacios Wanzo, cofundadora da Tuvis, startup israelense de integração de vendas por WhatsApp. Mãe de duas crianças, a executiva brinca que a companhia é sua “terceira filha”, nascida entre uma gravidez e outra. “Para mim, foi o modelo remoto que fez ser viável. Não tinha escola! Como que pais e mães fariam?”, brincou.

Estruturada no modelo completamente remoto – que continuará sendo aplicado, mesmo com o retorno gradual de algumas empresas para o trabalho presencial –, a empresa trouxe colaboradores de diferentes cidades brasileiras e países, incluindo Israel e Uruguai. Segundo Deborah, essa experiência se tornou parte da cultura da empresa.

“Agora, eu tenho outra pessoa do time que está de licença maternidade. Ela também teve a gravidez dela inteira em trabalho remoto. Isso ajuda demais. Hoje, entrevistando pessoas, principalmente mãe, você vê isso. Se você pegar São Paulo, onde você precisa se deslocar duas horas para ir e voltar ao trabalho – uma mãe poderia usar essas quatro horas do dia para ficar com os filhos. É algo que está fazendo com que os profissionais troquem de empresa.”

Deborah Palacios WanzoDeborah Palacios Wanzo, cofundadora da Tuvis (Imagem: Divulgação/Tuvis)

A IDtech brasileira Unico é outro exemplo de empresa que tem buscado implementar planos afirmativos para acomodar profissionais que são mães. No segundo semestre de 2021, a startup lançou um projeto piloto apelidado de “Mães na Engenharia”. A iniciativa abriu uma série de vagas com carga horária reduzida em 40%, benefícios integrais e trabalho remoto, que eram voltadas especificamente para mães que buscavam oportunidades dentro da área de tecnologia.

O programa foi uma criação de Fernanda Weiden, então vice-presidente de engenharia da Unico e hoje membro do conselho da companhia. Também mãe, a executiva colocou o projeto em prática como uma forma de enfrentar o déficit de profissionais mulheres na área de engenharia e, ao mesmo tempo, trazer mais mães para o setor. O programa teve mais de 200 candidaturas e contratou três profissionais em sua primeira temporada. Uma reformulação do plano já está sendo desenhada para o futuro.

Engenheira especializada em Machine Learning, Amanda Leonel foi uma das contratadas pelo projeto. Ao IT Forum, Amanda conta ter descoberto o programa da Unico no “timing ideal” de sua carreira: pouco tempo após ter voltado de sua licença maternidade, ainda em seu antigo emprego, se deu conta como o ambiente em que atuava, com poucas mulheres e ainda menos mães ao redor, não era o espaço receptivo que buscava.

“Não estava mais fazendo bem para mim, para o meu filho e nem para a empresa em que eu estava”, narra. “Foi chocante para mim ter encontrado o ‘Mães na Engenharia’. Aquele era o meu sonho desde que decidi ser mãe: trabalhar meio período na área de engenharia”. O resultado foi uma “virada” em sua vida. Com tempo extra permitido pela jornada reduzida de trabalho, Amanda conta que pode voltar a nadar, fazer yoga e até aprendeu a andar de bicicleta junto com seu filho.

“Muitas mães estão acostumadas a escutar elogios porque são ‘multitarefas’ ou são ‘guerreiras’. Eu não gosto desse tipo de rótulo. Nenhuma mãe deveria precisar aguentar fardos ou equilibrar pratos acima da média. Lá na frente isso é cobrado em saúde mental”, disse Amanda. “Quando entrei na Unico, foi uma virada muito grande. Tive mais qualidade de vida, qualidade de sono, pude estar com meu filho e fazer as brincadeiras que gostamos sem estar preocupada com o horário da próxima reunião. Não só meu tempo com ele é de maior qualidade, mas me sinto muito mais motivada a realizar meu trabalho”

Ambientes mais diversos e produtivos

Para Mariana Horno, gerente sênior da consultoria especializada em recrutamento e seleção Robert Half, empresas também devem entender as estratégias de acolhimento de profissionais que são mães como uma iniciativa de promoção da diversidade – e, como consequência, de geração de valor para a própria organização. “São várias características que a mulher-mãe agrega para a empresa de uma forma geral. São aptidões que se agregam não só à função dela, mas que a empresa pode aproveitar para mudar questões macro de cultura”, explicou Mariana.

Para a consultora, profissionais que são mães costumam desenvolver habilidades específicas relacionadas à maternidade que também tem um alto potencial de serem aproveitadas no ambiente corporativo. “Uma delas é a inteligência emocional para lidar com problemas e pressão”, pontuou. “Nada é mais desafiador do que você ser responsável por uma vida. Quando você transfere isso para o mundo profissional, você tem muito foco em questões de inteligência emocional, adequação a problemas e de liderança em situações adversas.”

Amanda Leonel, engenheira de Machine Learning da Unico (Imagem: Divulgação/Acervo Pessoal)Amanda Leonel, engenheira de Machine Learning da Unico (Imagem: Divulgação/Acervo Pessoal)

A gerente sênior também destaca aptidões como o aumento da capacidade resolutiva, senso de urgência apurado e a sensibilidade aguçada para gestão e o desenvolvimento de pessoas como características que profissionais que são mães costumam trazer. Todas elas, pontua a consultora, podem gerar valor para a empresa de uma forma geral. “São mudanças e transformações que acontecem e agregam valor de volta. E isso acaba sendo pulverizado dentro dos fóruns da empresa: dos projetos que a profissional mãe tem que lidar, nos processos de liderança e questões culturais que estou imprimindo na empresa.”

Amanda Leonel, que entrou na Unico através de um programa que atraiu múltiplas profissionais mães de uma só vez, também destaca a importância que essas iniciativas não sejam promovidas por empresas de forma isolada. Segundo ela, profissionais diversos – sejam mães, mulheres, pessoas negras ou pessoas LGBTQIA+ – sozinhos tendem a não se sentir realmente incluídos, e, por consequência, não conseguem atingir todo seu potencial.

“Falo por experiência própria. Quando trabalhei em áreas que eram majoritariamente masculinas, acabei incorporando ideias e o jeito de pensar dos outros porque não me sentia à vontade e segura para expor a maneira como pensava. Aí a diversidade não existe. A pessoa se sente isolada e acaba não contribuindo da maneira como gostaria. Daí a importância de trazer mais mães para dentro das empresas.

Estratégias “customizadas”

Formada em relações internacionais, Adelaide Adurens chegou à área de tecnologia durante a pandemia, enquanto buscava novas oportunidades para sua carreira. Por conta do mercado de trabalho aquecido – e incentivo do marido, também de tecnologia –, se inscreveu no curso de ciência de dados da escola de tecnologia Let’s Code.

Em menos de seis meses, já estava atuando na área, como analista júnior na área de dados do ITI, banco digital do Itaú. Mãe de dois filhos pequenos, Adelaide celebra a flexibilidade que a posição, totalmente remota, possibilita para ela na relação com os filhos. Mas, atenta, vê a necessidade de alguns cuidados com o modelo.

“O home office ajuda demais. Porém, eu acho que nós temos um pouco da perda da convivência do escritório”, avalia. “A mãe é isso: enquanto a gente está trabalhando de home office em casa, a gente também está ali de mãe. Se estivesse no escritório, ninguém ficaria me chamando para saber o que precisa fazer, fariam e pronto. A gente só precisa tomar cuidado com isso, se as mães não acabam sofrendo com uma sobrecarga, porque a questão de ficar em casa pode ser perigosa”.

Adelaide AdurensAdelaide Adurens, analista júnior na área de dados do ITI, banco digital do Itaú (Imagem: Divulgação)

“Tem mãe que consegue trabalhar com o filho do lado, eu não consigo. Cada uma vai encontrando seu caminho e aprendendo a lidar. Não tem o que é certo e o que é errado. Tem o que te fazer bem. Então você tem que encontrar a sua forma de lidar”, completou.

A vivência de Adelaide destaca algo que Mariana Horno, gerente sênior da Robert Half, destaca como essencial para companhias que buscam criar ambientes mais acolhedores para profissionais mães: as necessidades de cada mãe e pessoa são diferentes. “É muito difícil tangibilizar o que é massificado. A gente está falando de pessoas, e cada pessoa tem uma percepção”, explicou Mariana. “Em todos os movimentos que fazemos, o importante é considerar a pessoa. Aí faz sentido.”

Ela exemplifica: no caso de uma mãe que precisa se ausentar do trabalho por um período para buscar seu filho na escola, é mais interessante consultá-la sobre o horário ideal de uma reunião ao invés de simplesmente “liberá-la” para não participar. “Ela pode se sentir excluída. Se eu falar ‘fica à vontade, pode chegar mais tarde’, aquilo não é uma solução”, pontua. “Eu não preciso montar uma agenda condicionando para todo mundo, mas eu tenho forma de criar fóruns onde essa pessoa possa se sentir parte.”

E finaliza: “Ações efetivas são ações customizadas. Customização tem a ver com você conhecer seu liderado. Quando estou falando de uma mãe, cada uma tem uma necessidade, cada uma tem um contexto familiar, cada uma prefere trabalhar do seu jeito. Então, planejar juntos, criar metas entregáveis e possíveis e se sentindo parte todo o tempo, agregando valor na forma como ela pode, vai fazer diferença na vida dela.”

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