Brasil, o país das Fintechs: panorama do setor para 2020

Conversamos com especialistas do setor para entender o momento atual dessas companhias, bem como desafios e oportunidades

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8:00 am - 10 de fevereiro de 2020

Enquanto o resto do mundo viveu uma diminuição de investimentos feitos por firmas de venture capital, a América Latina recebeu o maior fluxo de capital já visto na história: Rappi, Quinto Andar, Loggi e Buser são exemplos de empresas que receberam aportes de investidores externos. E, dentre todos os setores investidos, o que mais se destaca é o mercado de negócios voltados para finanças, mais conhecidas como fintechs. 

De acordo com uma pesquisa da consultoria Finnovating, cresceu em 130% o fluxo de injeção de capital realizado em empresas desse segmento por toda a região, alcançando US$ 2,6 bilhões. De todo esse montante, o Brasil foi o país que recebeu mais recursos (US$ 1,3 bilhão) e abrigou os aportes mais valiosos do setor de fintechs: Nubank (US$ 400 milhões), Inter (US$ 341 milhões) e Creditas (US$ 231 milhões). 

Sem dúvidas, 2019 foi um ano para ficar na memória das companhias brasileiras. Mas e 2020? 

Para entender melhor as perspectivas reservadas para os próximos meses, conversamos com entidades do setor, consultorias e profissionais do mercado para entender as expectativas, oportunidades e desafios que aguardam as fintechs. 

Conhecendo o cenário 

Segundo dados divulgados em agosto de 2019 pelo Instituto Locomotiva, o Brasil conta com 45 milhões de pessoas desbancarizadas. Ou seja, uma população que não possui registro em nenhum dos bancos tradicionais ou que não fazem movimentações na sua conta há mais de seis meses. Público que, segundo o instituto, movimenta R$ 817 bilhões ao ano. 

Em paralelo, o brasileiro é um povo altamente digitalizado. A edição 2019 da TIC Domicílios, pesquisa que analisa anualmente o comportamento do usuário com a web, identificou que 70% de toda população (o equivalente a 126,9 milhões de pessoas) acessa a internet com regularidade, realizando atividades como pesquisar preços, fazer encomendas ou solicitar serviços de aplicativo. 

Juntando esses dois fatores, fica mais fácil entender como oferecer um serviço financeiro por um meio digital é um mercado com grande potencial por aqui.

E, de fato, o setor de fintechs presenciou um aumento significativo de empresas durante o período de 2018 e 2019: as 377 startups existentes no primeiro ano se tornaram 504 empresas na análise seguinte, salto de 34%, de acordo com levantamento da Finnovation

A pergunta que não quer calar: bolha ou boom? 

Um crescimento tão expressivo dentro de um espaço de tempo tão pequeno poderia ser o início de um movimento de saturação, ao concentrar um número elevado de companhias fornecendo serviços similares. Mas não é essa a percepção do mercado. 

“Eu não acredito que a gente esteja vivendo uma bolha. Acredito que estamos vivendo uma movimentação da parte bancarizada do setor financeiro. Quem tinha conta em banco grande está indo para uma fintech”, afirma Cláudio Sertório, sócio-líder de serviços financeiros da KPMG no Brasil. 

De acordo com Sertório, o crescimento deste setor acontece por meio de uma série de fatores, como redução de custos (pela inexistência de espaço físico e sistema legado), produto criado para uso por smartphone e um atendimento mais centrado no usuário.

“Tudo isso começou a combinar e abriu portas importantes para indústria financeira, com a possibilidade de redução de custos combinada com uma geração de novos consumidores que queriam ter um experiencia melhor com os bancos e a indústria financeiras como um todo”, explica. 

Todo esse movimento de digitalização da experiência bancária aumentou a confiança e uso de produtos comercializados pelas fintechs. De acordo com estudo Brasileiro e o dinheiro, da MindMiners, entre 2017 e 2019 mais do que dobrou o número de brasileiros que utilizam algum serviço dessas novas empresas – de 25% para 55%. 

As fintechs se consolidaram como grupo de startups que mais chama a atenção por ao menos um dos seguintes fatores: incluir pessoas que antes não tinham acesso a itens como um cartão de crédito e também apresentar um cuidado maior com a experiência do usuário.  

Mas, apesar do bom momento, as empresas do setor já sabem que precisarão se adaptar à uma nova realidade ao longo de 2020 para se manterem relevantes. 

Procurando seu lugar ao sol 

A edição 2019 da Pesquisa Fintech Deep Dive, feita pela consultoria PwC em parceria com a Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs) utilizou o perfil de 205 empresas pesquisadas para definir o cenário geral desse ramo no Brasil. E, pela análise, é possível ver como a grande maioria das startups envolvidas nesse cenário passa pelas mesmas dificuldades que as enfrentadas por qualquer empresa de outro segmento. 

De acordo com o levantamento, 62% das companhias estão em início de operação, com clientes e faturamento abaixo de R$ 5 milhões. Do total de empresas pesquisadas, quase metade conta com, no máximo, 10 funcionários, sendo que 47% não receberam investimento e 43% apontam a dificuldade de obter recursos como principal barreira à gestão de negócio. Ou seja: um cenário não muito desigual do enfrentado por outras startups. 

Quando se fala de modelos de negócio dentro do mercado fintech, mais da metade das firmas atua apenas em três segmentos: meios de pagamento, crédito (que contempla financiamentos e negociação de dívida) e bancos digitais

E esses serviços são os que mais recebem capital externo. De acordo com as informações do estudo feito pela Finnovating, 51,7% de todo o dinheiro investido em fintechs na América Latina foi direcionado para a criação dos chamados “neobanks”; já as fintechs concentradas em crédito ficaram com 29,68% desse total e a divisão de pagamentos recebeu 8,68%; 

Porém, seguir por esse mesmo caminho não é uma aposta segura. Todos os especialistas que conversaram com a Computerworld acreditam que as fintechs de pequeno porte só conseguirão se destacar no mercado caso apresentem um serviço diferente do que já é oferecido pelas empresas mais conhecidas e bom o suficiente para chamar a atenção dos clientes. E, por consequência, das firmas de venture capital. 

Ser diferente é essencial 

“Se a empresa não tem um valor agregado real para o cliente ela não se sustenta”, afirma Luis Ruivo, sócio da PwC e um dos responsáveis pela pesquisa em parceria com a ABFintech, “A marca pode ser atraente em um primeiro momento, mas o cliente precisa ver esse valor.” 

E de qual forma as novas startups podem se firmar? Um caminho pode estar na segmentação de seu produto para determinado público-alvo.  

“Eu vejo [esse momento] como uma questão de onda. A primeira onda foram as fintechs prestando um serviço de qualidade para o público insatisfeito com os bancos tradicionais. Agora estamos na segunda onda, na qual as empresas precisam se nichar para atender a um público mais fora do radar”, acredita Bruno Diniz, cofundador da consultoria financeira Spiralem e autor do livro O fenômeno Fintech, que explora a expansão desse mercado no Brasil. 

Como exemplo de empresas que estão indo por esse caminho, Diniz menciona as fintechs Linker e Cora, com serviços especializados para atender pequenas e médias empresas, e o Target, banco digital voltado para caminhoneiros. 

E dentro desse cenário no qual personalização é a palavra-chave, as novas tecnologias ganham um espaço cada vez maior para aumentar a competitividade dessas empresas.

De acordo com o estudo Fintech Deep Dive, o investimento em inteligência artificial e modelos de machine learning são vistos como prioridade entre os negócios, por conta da capacidade dessas ferramentas de entregar o serviço mais indicado para cada as necessidades de cada cliente. 

“As empresas podem usá-los para acompanhar indicadores econômicos e regular a carteira do cliente”, explica Ruivo, da PwC. “E, na parte de marketing, [o machine learning] pode criar modelos preditivos para entender se o cliente tem uma propensão a comprar determinado produto e direcionar campanhas para incentivá-lo. São exemplos que geram valor”. 

Apesar do considerável desafio de se destacar em um mercado disputado e com empresas consolidadas, as companhias que atuam no setor têm como vantagem estarem na ativa durante um momento no qual o governo está prestes a liberar serviços que irão promover grandes mudanças. 

Novidades a caminho 

Dentre os novos serviços que chegarão ao mercado financeiro está o Sistema de Pagamento Instantâneo (SPI), cuja implementação começará no final deste ano e que permitirá a transferência de valores entre contas durante sete dias da semana, 24 horas por dia. 

Outra novidade é a autorização para a prática de Sanbox Regulatório, que permitirá a experimentação de novos produtos dentro de um ambiente regulado e com menos restrições legais, de forma a fomentar a inovação no mercado. 

Porém, é inegável que a atualização mais comentada atende pelo nome de Open Banking (também conhecido como Sistema Financeiro Aberto), cujo uso mais consistente será visível a partir de 2021. 

 Como o nome já indica, o Open Banking permitirá que o consumidor tenha mobilidade sobre suas informações financeiras, podendo utilizá-las em outras instituições bancárias além da que ele é cliente e tem conta – e cada troca de dados entre bancos só acontece com o consentimento do usuário em questão. 

Esse “transporte” de dados ocorrerá por meio da padronização das APIs (sigla para application programming interface) interfaces que conversam com outros sistemas para compartilhar dados. Com todas as instituições utilizando uma tecnologia similar o cliente poderá, por exemplo, contratar um produto de um banco e permitir que essa instituição acesse a base de dados que ele já tem em outra empresa. 

Para Chen Wei Chi, sócio de consultoria em Serviços Financeiros para Transformação Digital e Inovação da EY, a implementação do Open Banking tem potencial para aprimorar bastante a relação do banco com seus clientes, já que não haverá necessidade imperativa de troca de instituição bancária para se obter um benefício em particular 

“Com o open banking o banco consegue atender o cliente em tudo. Tanto no fornecimento de serviços para uma parte [do sistema] na qual ele é dono de toda de receita e mesmo naquela parte em que ele não é tão bom.” 

Lançado no final de 2015 na Europa, o conceito de Open Banking já é aplicado em alguns países. O relatório Global Fintech Adoption Index, produzido pela EY, traz como o exemplo o caso do Yolt, serviço criando na Holanda e também usado por usuários do Reino Unido, Itália e França, que permite aos usuários conferir em um único app suas informações financeiras unificadas, como saldo em cada um dos bancos em que possui conta e faturas dos cartões de crédito.  

O lugar dos bancos nesse novo momento 

Assim como as fintechs, os bancos tradicionais também serão beneficiados pela implementação das novas tecnologias. Porém, precisarão investir em inovações para não perderem competitividade, especialmente após a liberação do open banking. “O que pode acontecer é dos bancos se tornarem um serviço de infraestrutura, da mesma forma que você compra infraestrutura de saneamento ou de telefonia”, explica Rafael Pereira, presidente da Associação Brasileira de Crédito Digital (ABCD).  

De acordo o executivo, o desafio presente dentro dessas instituições está em fomentar uma cultura de incentivos que fomente a criação de novos produtos. Fusões e parcerias também não estão descartadas.  “O mercado já viu, em outros casos, empresas se agrupando e isso vai acontecer de várias formas: de fintech para fintech, de banco para banco e entre fintechs e bancos.” 

Chi, da EY, concorda que o momento é de reinvenção para as instituições, mas acredita que elas ainda têm um espaço importante dentro de determinados setores da população. “Ainda há um público, especialmente o que tem mais dinheiro e que gosta de manter sua presença em um banco mais tradicional.” 

Ele ainda ressalta os esforços das instituições mais consolidadas para incorporar as melhoras práticas criadas dentro do ambiente te fintechs.

“Os bancos tradicionais estão adotando cada vez mais [o sistema de] squads para desenvolver novas funções e utilizando metodologias de design pra criar produtos. Diferente de um tempo atrás, em que os bancos crivam um produto e já lançavam, agora eles têm a preocupação de entender o consumidor antes de fazer essa apresentação.” 

Recentemente, a agência de classificação de risco Standard & Poor’s apresentou um estudo que analisou a possibilidade de os bancos brasileiros tradicionais perderem mercado para as fintechs. E, de acordo com a percepção da agência, ambos os lados têm forças consistentes o bastante para se manterem atraentes ao consumidor local. 

“Novos concorrentes terão vantagem competitiva pelos próximos anos, em virtude de seus ssitemas leves e ágeis. Entretanto, os grandes bancos são mais experientes em lidar com risco de fraude e segurança cibernética que as startups e fintechs”, explica um trecho do relatório. 

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