Não existem balas de prata, só complexidades
Se a complexidade não é a chave do mundo, mas o desafio a enfrentar, por sua vez o pensamento complexo não é o que evita ou suprime o desafio, mas o que ajuda a revelá-lo, e às vezes mesmo a superá-lo. Edgar Morin
Quando iniciei essa coluna, prometi um bônus de pensamento sistêmico em alguns artigos. Pensamento sistêmico e pensamento complexo serão tratados como sinônimos aqui.
Nesse início de ano e de governo, senti a necessidade de propor que a sociedade foque sua energia em identificar e debater problemas objetivos, ao invés de brigar a respeito de visões de mundo ou acreditar sem uma visão crítica em “balas de prata” ou “salvadores da pátria”.
O momento é ideal para propor uma reflexão sobre complexidade.
A premissa central da complexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria, de termos todo o conhecimento necessário para resolvermos problemas complexos de forma definitiva. Isso porque ela compreende não apenas grandes quantidades de unidades e interações no âmbito de um sistema, mas também de incertezas e fenômenos aleatórios.
Num certo sentido, complexidade tem estreita relação com a emergência de fenômenos que não temos como antecipar.
Democracia, segurança pública, desenvolvimento econômico, inovação tecnológica, desigualdade social, mudanças climáticas, costumes sociais, educação em alta escala e muitos outros são temas complexos. O planejamento deles requer pensamento sistêmico, pois operam por meio de um conjunto de sistemas e subsistemas. Não partir dessa compreensão é um erro que prejudica sair desse “labirinto dinâmico” que é a complexidade.
Qualquer exemplo será muito limitado em um texto dessa extensão, mas pensemos na proposta de liberar porte de armas para combater a violência. A partir da entrada de mais armas no sistema, a sociedade brasileira pode ter como efeito colateral o roubo de armas para uso de bandidos, mortes acidentais por falta de habilidade ou engano, mortes banais por excesso de medo ou acesso facilitado a armas, aumento de latrocínios por medo da vítima portar arma, entre outros. O resultado final no sistema pode ser mais perdas de vidas humanas (inocentes e criminosos), sem falar nos problemas de saúde com feridos a bala, sobrecarregando o já precário sistema público de saúde.
Talvez uma melhor intervenção sistêmica, no curto e médio prazo, seja reduzir a circulação de armas ilícitas, ao controlar melhor as fronteiras, destruir armas apreendidas, asfixiar financeiramente as organizações criminosas que traficam armas e prender seus líderes. Mas potencialmente a melhor solução de longo prazo é compreender e reduzir as razões sistêmicas que fomentam a proliferação de criminosos, entre as quais a extrema desigualdade social é um ponto central, algo tão complexo que nunca é incluído num plano de segurança pública. Países menos desiguais são mais seguros. Fato!
Como lidar com a complexidade na prática? De forma ultra resumida, sugiro os seguintes passos não lineares, mas iterativos, com idas e voltas aos mesmos passos, como acontece em uma espiral.
- Definir e estudar a fundo qual problema complexo queremos resolver;
- Definir e modelar (visualmente) o sistema complexo no qual o problema se encontra;
- Identificar as partes do sistema que não funcionam adequadamente;
- Fazer cenários e estratégias para intervir em partes-chave do sistema;
- Mapear os atores e as iniciativas com mais poder para promover mudanças no sistema;
- Articular atores no entorno das mudanças propostas, mantendo uma visão de ecossistema (sistema e subsistemas).
O White Paper “Recomendações sistêmicas para combater a desinformação nas eleições do Brasil” percorreu quase todos os passos acima. Abaixo, um mapa para ilustrar o passo 2.
A convivência entre ordem e desordem, acerto e erro, certeza e incerteza, segurança e risco, dados confiáveis e “pontos cegos” não apenas é inevitável, como são processos complementares inerentes às estratégias de mudanças sistêmicas.
Planos com base somente em “balas de prata”, certezas, rigidez e bravatas só servem para prejudicar a compreensão do mundo complexo, inibir as potencialidades re-organizadoras do sistema e, muitas vezes, provocar consequências negativas não intencionais.
A aceitação da complexidade e suas propriedades, nuances, consequências e efeitos colaterais ou indesejados é uma mudança de paradigma urgente.
Lidar com ela é possível. Dominá-la, não!
E não podemos esquecer… “a complexidade é o desafio e não a resposta”
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