Em terra com meia lei, juiz não é rei!

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7:05 pm - 22 de julho de 2016

A quantidade de opiniões e palpites sobre este tema que circularam nas redes sociais foi enorme. Entretanto, não vi nenhuma análise aprofundada das decisões judiciais e seus impactos sobre o funcionamento do país. Uma leitura, tanto da decisão da juíza da segunda vara criminal de Duque de Caxias, quanto da liminar contrária concedida pelo STF, revela, infelizmente, uma situação muito mais complexa e grave do que aparenta.

Conforme o alerta contido na nota oficial liberada logo após os fatos pela Assespro – Federação das Associações das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação, o tema “é longo e não está pacificado”. É fato que a legislação não consegue acompanhar em detalhes a velocidade das transformações da sociedade causadas pela adoção massiva de recursos do mundo da tecnologia da informação e comunicação.

Assim, qualquer decisão judicial sobre estes temas precisará interpretar as leis disponíveis (como p.ex. o Marco Civil da Internet). De outra parte, a nossa Constituição não concedeu o direito de legislar a nenhuma instância da justiça, nem mesmo ao Supremo Tribunal Federal (que existe apenas para dirimir questões de interpretação da Constituição).

Uma análise detalhada da decisão oriunda de Duque de Caxias, entretanto, revela vários pontos onde esse limite entre a interpretação da lei existente e a criação de novas leis parece ter sido ultrapassado.

O texto da decisão diz literalmente que ‘determinou o cumprimento da quebra do sigilo e interceptação telemática das mensagens compartilhadas no aplicativo Whatsapp’ dos ‘terminais-alvos’ indicados no ofício policial, ‘a desabilitação da chave de criptografia, com a interceptação do fluxo de dados, com o desvio em tempo real’, após a empresa ter informado da impossibilidade técnica de cumprir a ordem.

Em casos como estes, onde o juiz não é ‘experto’ no assunto, é praxe a convocação de até três peritos (da defesa, da acusação e do juiz). Mas nesta decisão não é citado o envolvimento de qualquer perito. Pelo contrário, o texto da decisão procura traçar paralelos com outros sistemas na nuvem para justificar a decisão, quando sabemos que cada software possui características distintas.

Ainda, essa exigência de interceptação pressupõe a existência de ‘backdoors’ nos softwares. ‘Backdoors’ são mecanismos de acesso ao interior dos sistemas sem o conhecimento dos usuários. Alguns fabricantes de hardware implantaram eles. Quando este caso chegou à Suprema Corte nos Estados Unidos (com base em processos deflagrados pelas denúncias do Snowden), eles foram considerados ilegais.

É preciso lembrar que a Apple Inc. se negou recentemente a cumprir pedido do FBI para quebrar a criptografia de um iPhone de um suposto criminoso, com base nessa decisão. Esse caso foi ‘solucionado’ pelo FBI quebrando a criptografia do iPhone com a contratação de um perito-hacker.

Em outra parte da decisão, a juíza declara ser ‘curioso o fato de que o aplicativo do WhatsApp funciona plenamente no Brasil com enorme número de usuários, sendo que, por óbvio, o mesmo é utilizado na língua portuguesa, possuindo, inclusive, corretor ortográfico em português’.

Essa afirmação contém vários erros técnicos: em primeiro lugar, o corretor ortográfico não é do WhatsApp, mas do sistema operacional (Android ou iOS), e compartilhado por todos os aplicativos que o usuário instala. Em segundo lugar, essa afirmação deixa claro o desconhecimento das características da computação em nuvem, que não respeita fronteiras. Assim como o WhatsApp tem ‘enorme número de usuários’ no Brasil, qualquer empresa brasileira pode ter o mesmo número de usuários em outros países, sem ter presença física neles.

Não existe lei brasileira que exija a instalação de escritórios físicos de uma empresa do Exterior ao atingir um determinado número de usuários (ou um determinado nível de receita).

Bem mais adiante, o texto da decisão afirma que “não se pode admitir que uma empresa se estabeleça no país, explore o lucrativo serviço de troca de mensagens por meio da internet – o que lhe é absolutamente lícito -, mas se esquive de cumprir as leis locais. Não há, assim, como se tolerar que as autoridades judiciais deste país, frequentemente à frente de investigações criminais de grande monta, estejam sujeitas a tamanho descaso. Trata-se de uma afronta ao sistema judiciário nacional e muito mais do que isso, uma afronta ao próprio Estado Nacional.”

Esse trecho não leva em conta que um sistema de mensagens pela Internet pode ser provido a toda a humanidade de qualquer ponto do planeta, nem que o serviço do WhatsApp é gratuito. Ainda, a citada ‘afronta’ ao Estado não é caracterizada como violação de nenhuma lei, portanto, está no mínimo incompleta.

Em outro trecho da decisão, a juíza afirma ter intimado o Facebook do Brasil (que aufere receitas no país e possui CNPJ) porque sua matriz no Exterior é a controladora acionária do WhatsApp, tomando como base o valor da aquisição desse controle acionário, em vez de citar a lei que se aplica. O Código de Processo Civil, se aplica ao sim ao Facebook do Brasil, assim como a qualquer empresa instalada no país, mas apenas a estas.

A decisão da juíza de Duque de Caxias, conforme a já citada nota da Assespro, “coloca em risco muito mais elementos do que estão considerados no processo judicial”. Para concluirmos, é necessário explicitar os detalhes técnicos do processo de bloqueio do WhatsApp.

Nossa justiça determinou que as operadoras de telecomunicações (como responsáveis pela manutenção da infraestrutura de Internet no país) bloqueiem todas as comunicações entre os dispositivos móveis/computadores dos usuários com os servidores do WhatsApp, assim tornando o serviço indisponível aos usuários no país.

Esse processo se constitui numa violência virtual (e, portanto, invisível). Ela é semelhante à que veriamos no mundo real se, no caso de um criminoso postar uma carta-bomba numa Agência dos Correios, a justiça ordenasse a mobilização das polícias e da segurança privada existente no país para impedir a circulação dos veículos dos Correios para a entrega de quaisquer correspondências, até que os Correios fornecessem as informaçoes do criminoso para a justiça.

Além de desproporcionais e ditatoriais, estas atitudes prejudicam a sociedade toda para intentar coibir a ação de uns poucos criminosos: são penalizados os cidadãos que se valem da tecnologia atingida como meio de comunicação, causam-se prejuízos para as empresas que a usam no atendimento a seus clientes, e interrompem-se atividades da própria justiça (conforme citado na liminar do STF).

Finalmente, devemos observar que, se a justiça persistir nestes bloqueios brutais, os criminosos que ela deseja perseguir desenvolverão seus próprios sistemas de comunicação via Internet (e que certamente possuirão chaves criptográficas mais sofisticadas e não possuirão ‘backdoors’ de nenhum tipo). Sendo criminosos, eles também não cumprirão ordens judiciais.

Portanto, o custo que estas decisões geram para a sociedade se transformará em total e absoluto desperdício de recursos.

De acordo com o texto da lei, ninguém tem o direito de questionar ordens judiciais: elas devem ser cumpridas. Diante de decisões ‘pouco sábias’, a lei nos dá o recurso da apelação. Mas, na prática, seria muito melhor para o país todo que essas decisões ‘pouco sábias’ simplesmente não ocorressem.

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