Se o aumento no preço foi excessivo a culpa não é das patentes

As patentes, em si, não são as culpadas por eventuais irregularidades, cabe examinar cada situação e coibir eventuais excessos de acordo com a lei.

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12:30 pm - 23 de novembro de 2019

A notícia do protocolo de uma representação no CADE reacendeu o debate sobre a licitude dos preços praticados pela farmacêutica norte-americana Gilead na comercialização do princípio ativo Sofosbuvir. De acordo com as informações veiculadas na mídia, a representação em questão apontou que, depois da concessão da patente no Brasil, os preços teriam aumentado aproximadamente 1.421,55%.

O Sofosbuvir é um princípio ativo utilizado no tratamento da hepatite C que, quando em combinação com outros ativos antivirais, apresenta alta eficácia. Por essa razão, a procura pelo medicamento da Gilead no mercado é bastante alta, sobretudo por parte de órgãos públicos ao redor do mundo. Não é diferente no Brasil, onde o SUS (Sistema Único de Saúde) também utiliza o Sofosbuvir no tratamento de pacientes com hepatite C.

O ponto é que a Gilead é a única fornecedora desse medicamento no País em função de o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) ter concedido à empresa a patente PI 0410846-9, em 15.1.2019. Consequentemente, a empresa detém a exclusividade temporária da exploração econômica do princípio ativo. E é nisso que reside a controvérsia, uma vez que a representação busca construir uma espécie de relação direta entre a patente e o suposto aumento praticado, para justificar o requerimento de que o CADE determine o licenciamento compulsório do produto. Mas não é tão simples assim.

O processamento da patente em questão foi um dos mais turbulentos possíveis e levou nada menos que 15 anos para ser decidido, desde o depósito perante o INPI em 2004. Diversas associações se manifestaram contrariamente à concessão da patente, tais como a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, o Instituto de Tecnologia em Fármacos, algumas farmacêuticas e laboratórios nacionais.

O fundamento de algumas dessas oposições era, basicamente, a alegação de que a concessão da patente seria maléfica à coletividade, pois a exclusividade temporária sobre o princípio ativo elevaria os preços e prejudicaria a competição. Durante as discussões, uma das farmacêuticas nacionais disse, inclusive, estar preparada para fornecer um medicamento genérico para o SUS, compreendendo o Sofosbuvir em sua composição, a preços mais competitivos que os da Gilead. A repercussão foi tamanha que a então candidata à Presidência da República, Marina Silva, tentou intervir para evitar que o INPI concedesse a patente.

Ocorre que não basta invocar o suposto interesse público ou apelar ao bem-estar da coletividade para elidir a concessão de uma patente. E isso tanto por questões técnicas quanto econômicas.

Quanto ao primeiro aspecto, o INPI realizou uma detida análise e decidiu que o Sofosbuvir merecia proteção por uma série de motivações técnicas, incluindo discussões químicas complexas a respeito da estrutura molecular do princípio ativo, com participação das associações e farmacêuticas mencionadas acima. Como acontece com órgãos análogos ao redor do mundo, não foi por discricionariedade que o INPI concedeu a patente PI 0410846-9.

Com a patente concedida em mãos, a Gilead tem o direito de impedir terceiros de comercializar o Sofosbuvir por tempo determinado (até 2029), como garantido pela Lei 9.279/96, popularmente conhecida como Lei da Propriedade Industrial. E é justamente nesse ponto que se insere a importância de considerar o aspecto econômico.

Diferentemente do que possa parecer, propriedade intelectual (industrial, no caso) e proteção da concorrência não são elementos antagônicos. Aliás, ocorre justamente o contrário. A concessão de patentes atreladas ao direito de exploração exclusiva do medicamento tem fundamentos econômicos baseados no incentivo ao desenvolvimento tecnológico, à remuneração do inventor pelo trabalho no desenvolvimento da alternativa e, ainda, ao incremento da diversidade de bens à disposição da coletividade. O privilégio de invenção é concedido para evitar a situação do “free rider”, que poderia “pegar uma carona” nos investimentos alheios, caso não houvesse a proteção patentária. Nesse contexto, a patente é fator que favorece que haja mais investimentos em novas descobertas: mais concorrência no futuro.

A patente confere uma exclusividade legal de exploração, mas há razões econômicas e fundadas justamente no interesse público para que seja mantida e mais: incentivada. Tampouco essa exclusividade significa, necessariamente, a ausência de concorrência. Em inúmeros casos, produtos protegidos por patente se encontram em concorrência com outros produtos, sejam eles protegidos ou não.

Dessa forma, o “monopólio” da Gilead não é, por definição, algo negativo. Trata-se, em princípio, de uma recompensa pelos pesados investimentos em pesquisa que, aparentemente, resultaram num medicamento revolucionário. Não podemos sucumbir à tentação de encarar o lucro de quem inova como se fora um pecado.

É justamente por isso que a Lei da Propriedade Industrial não envolve análise dos preços praticados pela detentora da patente na comercialização de seus produtos. Não obstante, embora o direito às patentes seja justificável, eventual abuso em seu exercício deve ser reprimido. Primeiro, concede-se o direito e, depois, apura-se se esse foi exercido de maneira irregular.

Esse exame pode ser realizado por diferentes entidades, em especial pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). O órgão, que é mais conhecido por combater carteis, também é responsável por reprimir a prática de condutas anticompetitivas, como a elevação injustificada de preços, sobretudo por aqueles que detêm grande participação de mercado (posição dominante) ou monopólio.

O ponto a destacar, contudo, é que não é todo o aumento de preço que será caracterizado como abusivo. Valores elevados são naturais e até mesmo previsíveis em situações de produtos protegidos por patentes, como em qualquer outro caso envolvendo exclusividade na exploração. Há razões econômicas para tanto, que são benéficas à sociedade, conforme apontado acima. Por isso, não basta o simples aumento de preços para que haja o “licenciamento compulsório do produto”.

A Gilead, detentora da legítima patente de seu produto, terá oportunidade de se manifestar e justificar a ocorrência do alegado aumento que, se existente, poderá não constituir ilícito se a Gilead demonstrar que havia fundamentos fáticos, técnicos ou econômicos a justificar a elevação nos preços. Por isso, a ponte que a representação busca construir entre a patente e a ilicitude do aumento de preços enfrentará uma série de dificuldades para se sustentar.

Aliás, cabe apontar que, diferentemente do que pretende a representação, o CADE sequer poderia impor licença compulsória de um produto patenteado. Isso porque suas atribuições nesse aspecto se limitam a recomendar ao órgão competente (no caso, o INPI) que “seja concedida licença compulsória de direito de propriedade intelectual de titularidade do infrator, quando a infração estiver relacionada ao uso desse direito” (art. 38, IV, “a”, da Lei nº 12.529/2011).

Dessa forma, ainda há muito o que ser discutido a respeito dos preços praticados pela Gilead na comercialização do Sofosbuvir. O assunto, assim, seguirá em pauta por um longo tempo. Certezas, assim, não há.

Por outro lado, o que se pode afirmar é que as patentes, em si, não são as culpadas de eventual irregularidade. No caso do Sofosbuvir, a patente concedida foi amplamente discutida durante o processamento no INPI, e pode seguir em discussão judicial. Preços eventualmente abusivos podem ocorrer em qualquer mercado e, inclusive, com produtos não patenteados. Cabe examinar cada situação em concreto e coibir eventuais excessos, mas sempre nos quadrantes da lei.

*Por Gustavo da Costa Simões, especialista em propriedade intelectual no escritório Lobo de Rizzo Advogados; Henrique Lago da Silveira, advogado da área Concorrencial e Regulatório no escritório Lobo de Rizzo Advogados; Sérgio Varella Bruna, sócio-gestor de Concorrencial e Regulatório no escritório Lobo de Rizzo Advogados. e Ana Paula Celidonio, sócia-gestora da área de propriedade intelectual no mesmo escritório.

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