Silvio Meira: ‘Brasil tem que acabar com teatro na inovação e no empreendedorismo’

Um dos fundadores do Porto Digital, Silvio Meira faz balanço de 22 anos do parque tecnológico e reflete sobre o atual cenário de tecnologia e inovação

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9:53 am - 17 de agosto de 2023
Foto: Divulgação

“Para mim essa é a grande vitória do Porto Digital: trazer esse povo todo para cá com a visão de futuro das pessoas acharem que é possível”, diz Silvio Meira, presidente do Conselho de Administração do parque tecnológico de Recife, mas esse título nem de longe resume o paraibano nascido em Taperoá. Meira é cientista, professor universitário e empreendedor, mas também um pensador sobre o presente, o passado e o futuro do setor de tecnologia e inovação brasileiro.

A menção ao Porto Digital de Recife não é por acaso. É, provavelmente, a maior das suas obras. Fundado em janeiro de 2000 e iniciado com cinco empresas e 46 pessoas, é hoje o terceiro maior contribuinte para o PIB do Recife, com R$ 5 bilhões gerados só em 2022. Silvio, é claro, projeta muito mais.

“Vejo um Porto Digital de 500 a mil empresas, com 50 mil pessoas trabalhando [em 2050]. Mais empresas de classe mundial. Com os salários médios muito, mas muito, acima dos salários do Recife e do Nordeste. E uma capacidade de criação e atração de negócios em tecnologia e baseados em tecnologia única no Norte, Nordeste no Centro-Oeste do Brasil”, conjectura ele.

Nessa entrevista concedida ao IT Forum, dentro do nosso especial para o Dia da Informática, Silvio Meira vai muito além da computação. Falamos de educação, inovação tecnológica, dilemas éticos e crise das startups. E sobretudo da forma como a humanidade (ou o que deveria ser uma humanidade) encara os desafios que se avizinham.

“No caso do Brasil tem que acabar o teatro da inovação e do empreendedorismo. Temos problemas reais para resolver, não é brincadeira”, sentencia.

Leia os melhores momentos.

 

IT Forum: Você costuma ser o primeiro nome lembrado quando se quer evocar o desenvolvimento tecnológico e a inovação na região Nordeste do País, particularmente Recife. Essa associação te alegra ou você a rejeita?

Silvio Meira: Eu não me incomodo com rótulos nem me preocupam percepções. Eu me preocupo em fazer o meu trabalho.

A gente tem feito um trabalho em Pernambuco, no Porto (Digital), no CESAR, que é uma forma de fazer inovação em escala. Nós somos 370 empresas com 18 mil pessoas em um ecossistema local de inovação que tem o maior número de PhDs do Brasil. São mais de 600 em um lugar que no ano 2000 não tinha nada. Em duas décadas a gente criou um ecossistema em uma das regiões mais pobres do Brasil saindo do nada, com muito pouco apoio, pouco insumo político, financeiro e de Estado.

Temos uma malha empreendedora aqui que ouso dizer que não precisa ser referência de nada. Ela faz. E eu sou parte desse povo.

Não me sinto diferente do resto da galera. Eu faço um papel de articulação, movimentação, criação de teorias, que tem a mesma relevância de um coder em algum lugar fazendo um código-chave em uma maquininha de pagamento por aproximação.

As pessoas ficam querendo achar pessoas de referência, mas a grande sacada do Porto Digital é a rede de 18 mil pessoas que quer ser de 50 mil pessoas. Não acho que existe esse rótulo de pessoa de inovação no Nordeste.

 

IT Forum: Mesmo assim você acha que o Brasil precisa olhar mais para fora do eixo Sul-Sudeste? Falta diversidade regional no ecossistema brasileiro de tecnologia e inovação?

Silvio Meira: O Brasil precisa entender o Brasil. Só São Paulo tem 40% do PIB brasileiro. A gente vai empilhando as coisas em São Paulo e Campinas. E vai esquecendo que, no caso dos EUA, por exemplo, os centros [de pesquisa e inovação] de desenvolvimento regional são [atualmente] em cima de Atlanta, que estava em situação extremamente difícil.

E aí o governo americano procurou formas de resolver o problema de forma mais inteligente possível: atrair pesquisa e desenvolvimento para trazer as pessoas para morarem lá.

Aqui a gente concentra ao invés de distribuir. Exclui ao invés de incluir. Esquece que tem um País inteiro que muito provavelmente, tenho quase certeza disso, a violência da periferia de São Paulo é resultado da pobreza do resto do País. O crime organizado de São Paulo se alimenta da pobreza do resto do País.

Mesma coisa no Rio de Janeiro, Distrito Federal… A gente não entende que o Brasil é um país muito complexo que depende de articular muitas coisas ao mesmo tempo. Isso é uma temeridade não só para o Brasil, mas também para São Paulo.

 

IT Forum: Voltando ao Porto Digital, Silvio. Ele fez 22 anos recentemente. Como tudo começou e como é olhar para trás depois de tanto trabalho?

Silvio: Eu estou metido nesse negócio diretamente desde 1978, quando sai do setor financeiro em São Paulo e vim fazer uma pós-graduação aqui em Pernambuco. São 45 anos esse ano. Essa transição para mim pessoalmente começa em 78, mas muito antes quando é instalado o primeiro computador na prefeitura da cidade de Recife. Para processar impostos aqui.

Isso levou a um conjunto de movimentações muito grande. Trouxe firmas de tecnologia internacionais a se instalarem aqui. Se a gente pegar mesmo o começo do Porto Digital, as raízes começam a ser plantadas com as primeiras empresas da informática aqui.

O Recife tem a Proceng que completou 51 anos esse ano. É uma das empresas de tecnologia mais antigas do País. A trajetória do Porto Digital tem que vir lá detrás. Se não tivesse empreendedores aqui desde a década de 70 não haveria Porto Digital, mas a gente olha isso olhando para frente, em 2050, e para trás, em 1970.

Da estruturação do Porto Digital, o que marca mesmo a história daqui foi um conjunto muito grande de eventos que levou a gente a reunir energia e um número grande de agentes da política, da sociedade e assim por diante, entre 1999 e 2000, para recuperar o centro do Recife. E fazer o que? Não é botar bares e restaurantes, é botar uma coisa que permaneça aqui e crie localidade, energia, e estruture esse mundo.

A partir daí a gente começou a entender que era possível fazer uma articulação muito maior do que só com o pessoal de tecnologia. Precisava do povo de urbanismo, de design, economia criativa, advogados para negociar contratos etc. E essa mobilização multidisciplinar e multifacetada, de agentes que não se encontrariam normalmente, foi absolutamente do caralho.

E para mim é a grande vitória do Porto Digital. Trazer esse povo todo para cá com a visão de futuro das pessoas acharem que é possível.

Quando a gente começou eram 5 empresas e 46 pessoas, em janeiro de 2000. E durante uma década mais ou menos, os pessimistas diziam todo dia para a gente que era impossível. E hoje o Porto Digital é o terceiro maior PIB da economia do Recife. Foram R$ 5 bilhões em 2022. É pequeno quando se compara com São Paulo, mas em 2000 não tinha nada.

 

IT Forum: Você disse que imagina o futuro do Porto Digital pensando em 2050. E o que você enxerga em 2050?

Silvio Meira: Eu vejo um Porto Digital de 500 a 1 mil empresas, com 50 mil pessoas trabalhando. Mais empresas de classe mundial. Com os salários médios do Porto Digital muito, mas muito, acima dos salários médios do Recife e do Nordeste.

E uma capacidade de criação e atração de negócios em tecnologia e baseados em tecnologia única no mínimo no Norte, Nordeste no Centro-Oeste do Brasil.

 

IT Forum: Preencher essas 50 mil vagas que você vislumbra em 2050 é um desafio, considerando o gap que temos de profissionais de tecnologia no mercado brasileiro. Imagino que essa seja uma questão cara para você, porque além do Porto Digital você também ajudou a fundar o Instituto Nacional de Engenharia de Software e o CESAR. O quanto a educação é importante agora para o Brasil?

Silvio Meira: A única solução para qualquer sociedade, em qualquer lugar do mundo, para qualquer coisa que se for fazer, é a educação. Tem que pensar no curto, no médio e no longo prazo. Em todas as facetas da sociedade. E aí no nível mais alto possível.

Em qualquer nível que você estiver fazendo educação, não é bom o suficiente. Por que? A gente precisa saber muito mais sobre muito mais coisas. A gente precisa saber dos impactos sobre o meio ambiente, sobre os animais. A gente precisa substituir o abate animal para obtenção de proteínas por fábricas e laboratórios.

A gente precisa editar o código genético para resolver problemas que a humanidade tem, problemas graves. Não se resolve colesterol tomando remédio, mas editando código genético. E não estamos nem perto ainda.

E código genético é código. É problema de software! É um software que você nasceu rodando, e nós vamos editar. O futuro da cura de um monte de coisas é a edição do código genético.

Eu imagino em 2050 que centenas de empresas no Porto Digital estarão na cadeia de valor de código genético. Seja para editar ou criar coisas novas in vitro. Eu tenho certeza disso como tenho certeza de que meu nome é Silvio Meira.

 

IT Forum: Outro tema caro para você que gostaria de abordar é a inovação. Ainda estamos enfrentando uma crise de capital para investimento em inovação no Brasil e no mundo. Quando você acha que essa crise vai passar?

Silvio Meira: A crise vai passar quando a gente reentender no que tem que investir. Uma parte significativa [dos investidores], inclusive hiper mega fundos, era totalmente sem noção. Tem empresas que receberam investimentos milionários para bilionários e que não tem nenhuma justificativa mínima. Como é que as pessoas estavam fazendo isso?

É um reajuste filosófico. Por exemplo, sempre achei, você vai ver declarações minhas desde o começo, que há um mega processo de inovação e empreendedorismo de palco em países em que a autoajuda é muito forte, inclusive no Brasil. Muita gente dizendo que está inovando, e quando vai ver é só teatro.

Saíam com pitchs por aí que não tem absolutamente nada. Nada em que alguém que queira investir para transformar a realidade. Aspiração em alguma coisa concreta. No caso do Brasil tem que acabar com o teatro da inovação e do empreendedorismo. Temos problemas reais para resolver, não é brincadeira.

A segunda coisa que sempre fui contra é ficar atrás de unicórnios. Acho essa parada uma das mais sem noção do investimento mundial. A cada rodada se sai com o único objetivo de multiplicar retorno de investimento. A maioria dos investimentos em startup é indistinguível de uma pirâmide financeira.

Sempre foi muito mais estável e sustentável, muito mais equilibrado e intrusivo para a sociedade, e menos capaz de causar o tipo de impacto negativo que muitas plataformas causam, ir atrás de resolver problemas em conjunto. É muito mais sustentável ter 30 empresas que vale R$ 100 milhões do que apenas uma que vale R$ 3 bilhões.

Vamos fazer uma empresa para resolver o problema de mobilidade global. E o Uber está quebrado. Uma empresa de escritórios, WeWork: está quebrada também. Se essa empresa de cada coisa tiver um problema de reputação ou regulatório…

Por exemplo, você tem uma empresa de microblogs. Aí um idiota compra. Pode usar essa palavra mesmo. Aquele ecossistema de meio bilhão de pessoas vai para o espaço porque alguém pagou bilhões pelo negócio. Isso não é razoável.

Estamos fazendo coisas insustentáveis e é por isso que elas desaparecem.

 

IT Forum: Você vê luz no fim do túnel? Vê essa mudança filosófica nessa forma gananciosa de fazer as coisas?

Silvio Meira: Eu não vejo por que a humanidade vai continuar sendo a mesma coisa para sempre. Não vejo no curto prazo. No curto prazo eu tenho uma impressão de que a gente não está conseguindo mudar o comportamento dos seres humanos.

Eu uso uma frase do Edgar Morin: o grande desafio da nossa contemporaneidade é transformar um bando de seres humanos em uma humanidade de verdade. Enquanto a gente se distinguir na terra por ser branco, amarelo, chinês, brasileiro, católico, judeu, assim por diante, e não conseguir se unificar e dizer que somos seres humanos.

Estamos enfrentando a maior crise estrutural, que provavelmente trará consequências que vão afetar a vida de toda a população da terra de forma severa. E não temos humanidade para enfrentar isso. Existem bandos de seres humanos que ficam litigando uns com os outros.

 

IT Forum: Diante disso, os limites legais e éticos das tecnologias que estamos desenvolvendo hoje te preocupam? Você citou edição genética. Temos também o advento da inteligência artificial generativa.

Silvio Meira: Veja, a gente tem que olhar para tudo com limites. Se você olha para as coisas acontecendo ao nosso redor e diz que elas não têm limites, na prática você criou um vale tudo e ninguém vai cuidar do bem comum. Estamos partindo do princípio de que os seres humanos e bandos de seres humanos não são exatamente uma humanidade. Para isso precisa de espaço regulatório.

A sociedade articulada, não as empresas sozinhas, vão mais ou menos tentar fazer com que a gente consiga criar espaços minimamente razoáveis onde a performance das empresas para resolver os problemas dos seres humanos não criem mais problemas do que resolvam. Ao mesmo tempo em que a gente não trava os processos de experimentação e inovação que avançam o estado das coisas da humanidade.

Não podemos pegar uma empresa de 100 milhões de usuários e não regular porque “não sabemos o que é”. As pessoas sabem o que é e como funciona.

Mas também a gente não pode pegar uma startup que está tentando resolver problemas novos e regular na partida. Se fizermos isso começa um processo de destruição das possiblidades de futuro.

Se você regular o presente habilitando o futuro, aí tá tudo bem.

 

*Esta é uma das reportagens da série Especial Dia da Informática 2023, celebrado em 15 de agosto. Confira aqui o especial completo.

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Marcelo Gimenes Vieira

Editor do IT Forum. Jornalista com 12 anos de experiência nos setores de TI, telecomunicações e saúde, sempre com um viés de negócios e inovação.

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