Marco legal do crowdfunding e o incentivo aos novos negócios

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8:54 am - 31 de outubro de 2017
crowdfunding

Difícil encontrar uma pessoa que não tenha, um dia, participado de uma “vaquinha”. Seja para comprar um presente para um amigo, um eletrodoméstico para a casa, um novo veículo para a família. A experiência sempre se inicia com um desejo ou necessidade e a impotência de realiza-lo sozinho. O termo pode mudar e até se modernizar (vide o tal “financiamento coletivo” ou “consórcio”), mas o conceito permanece inalterado no básico: são pessoas distintas que contribuem financeiramente para alcançarem um objetivo comum, objetivo esse que dificilmente alcançariam isoladamente.

O crowdfunding, apensar de ter sido criado em 2006, não se afasta desse conceito tão antigo, pois se dedica a viabilizar financeiramente os mais variados projetos. É uma das ferramentas preferidas de empreendedores que desejam certa independência em relação ao investidor. O que ganha o investidor com seu investimento? Depende do que oferece o empreendedor financiado. As recompensas podem ser consideráveis ou simbólicas, sendo comuns os casos em que o investimento acontece quase que por filantropia, seja em relação ao empreendedor, seja em relação à própria coletividade, que seria beneficiada com a implementação do projeto (vamos pensar, por exemplo, no financiamento de uma invenção que revolucionaria o tratamento de doença grave).

Com a internet e por meio das plataformas eletrônicas, o crowdfunding elevou a “vaquinha” ao nível global, pois qualquer interessado poderá participar de projetos em praticamente todos os países do mundo desenvolvido, extinguindo-se fronteiras e aumentando a exposição de bons e maus projetos.

Ocorre que, no Brasil, havia uma restrição para utilização do crowdfunding: não era possível financiar o projeto de uma nova empresa mediante o recebimento de participação societária pelo investimento. Em outras palavras, o investidor não poderia receber a contrapartida em quotas de capital social. Não que fosse impossível, mas a nova empresa teria que dispender tempo e dinheiro para fazer a transação corretamente, por meio da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o que praticamente inviabilizava a operação, pois ter boas ideias não é o mesmo que ter recursos (até por isso a necessidade da “vaquinha”). Dessa forma, a utilização do crowdfunding com oferta pública de participação societária (equity crowdfunding) em troca de investimento só poderia ocorrer mediante registro junto à CVM, de acordo com o artigo 19 da Lei n. 6.385/76, o que colocava um freio no empreendedorismo e no manejo eficaz e abrangente do crowdfunding.

Entretanto, o cenário anterior foi modificado pela Instrução CVM n. 588, de 13 de Julho de 2017, que foi criada justamente para dar regulamentação ao equity crowdfunding. Ela não regulou o crowdfunding que se realiza mediante doação ou cuja recompensa seja realizada por meio de brindes, recompensas, bens ou serviços, o que, de certa forma, é o mesmo que dizer que só abrange o modelo de recompensa como participação societária.

A Instrução não se dedica a todos os tipos de sociedade, estabelecendo alguns critérios para que a mesma possa se beneficiar de suas disposições: é necessário que a sociedade seja brasileira e de pequeno porte, assim considerada aquela cuja receita bruta anual de 10 milhões de reais, excluindo as sociedades anônimas abertas. Trata-se de um limite razoável e que deve abarcar a grande maioria das startups. Caso a sociedade não tenha mais de 1 ano de existência, o limite será proporcional ao número de meses de operação.

Há outros limites: o investimento pretendido não pode ultrapassar 5 milhões de reais, a oferta por meio da plataforma eletrônica precisa ter prazo máximo de 180 dias, definidos antes do início da oferta, a fim de que os investidores tenham mais segurança jurídica, evitando mudança de prazo não prevista.

A destinação do valor arrecadado também foi regulamentada, não podendo ter como objeto movimentos societários como fusões, incorporações, aquisições de ações, concessão de crédito a outras sociedades ou aquisição de títulos e valores mobiliários. A intenção é claramente evitar que o investimento perca sua importante característica social de fomentar o empreendedorismo.

As empresas de pequeno porte que utilizarem o equity crowdfunding não poderão repeti-lo sem registro junto à CVM dentro do período de 120 dias após a finalização da oferta anterior. O valor que poderá ser investido por ano-calendário é de 10 mil reais, havendo algumas exceções, como no caso de investidores profissionais (com comprovada experiência).

A Instrução previu uma espécie de direito de arrependimento, como vemos em relações de consumo, ou seja, em 7 dias contados da confirmação do investimento o investidor poderá desistir, não podendo ser penalizado por isso.

Pois bem. Até então falamos sobre o ato da oferta em si, que dispensa registro no CVM, mas se fosse possível realizar a oferta em qualquer tipo de plataforma, a segurança jurídica pretendida ficaria prejudicada, visto que o natural, com tal liberação, é que se multipliquem as empresas e sites intermediadores, muitos deles sem experiência ou oportunistas. Sendo assim, a Instrução estabeleceu que as plataformas eletrônicas de investimento precisam do registro junto ao CVM, bem como cumprir diversas regras de segurança e transparência, entre as quais destacamos: assegurar-se que a sociedade de pequeno porte cumpra os requisitos legais e atestar a veracidade das informações prestadas pela mesma. Além disso há diversas diretrizes contratuais que deverão ser observadas pelo site em sua relação com os investidores, pois é o interesse dos mesmos que está sendo resguardado, conforme descreve o próprio artigo 1º da Instrução.

As regras financeiras em relação ao site também são rígidas. Na sistemática do crowdfunding tradicional a oferta de investimento fica aberta pelo tempo determinado ou até que se alcance o valor pretendido, o que acontecer primeiro. Se o valor for alcançado o empreendedor receberá os fundos. Se não for alcançado, a plataforma devolverá aos investidores as somas oferecidas. Durante o período da oferta, então, onde ficará o valor investido? A Instrução proibiu que os valores transitem pelas contas bancárias em nome da plataforma, dos seus sócios, administradores ou qualquer pessoa a ela vinculada, bem como contas mantidas por empresas controladas, investidores líderes ou pessoas a ele vinculadas. Essa regra talvez crie problemas operacionais, tendo em vista que um terceiro deverá deter tais valores, numa espécie de contrato scrow, recebendo instruções sobre a quem liberá-los, dependendo do sucesso da arrecadação.

Há muitos outros pontos que poderiam ser destacados na Instrução CVM n. 588, mas o essencial é compreender que, juntamente com a Lei Complementar n. 155/2016, que alterou a Lei 123/2006, a fim de reconhecer a figura do investidor-anjo e estabelecer regras claras para aporte de capital, a regulamentação do equity crowdfunding é mais uma iniciativa para fomentar o empreendedorismo e aumentar a gama de ferramentas jurídicas pelas quais as startups poderão receber importantes, para não dizer essenciais, investimentos e recursos.

*Ricardo Oliveira e Márcio Cots são advogados da Cots Advogados

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