Diversidade em crise: discursos machistas e cortes de verbas ameaçam inclusão de mulheres em TI
Líderes revelam que tema é tratado sem garantia de ações no longo prazo e sugerem o que é preciso ser feito
O movimento de inclusão de mulheres na tecnologia enfrenta desafios globais. A dissolução de organizações como a Girls in Tech destaca um momento crítico para programas de diversidade. Fundada em 2007 e com o apoio de grandes empresas, a Girls in Tech foi dissolvida em 2023 devido à queda de financiamento e à pressão política contra iniciativas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI). Com o mercado em retração e cortes em iniciativas semelhantes, como a Women Who Code, o movimento de inclusão enfrenta retrocessos. Esses desafios também ecoam no Brasil, onde empresas ainda tratam a diversidade como “pauta”, sem garantir ações de longo prazo.
Segundo Iana Chan, fundadora e CEO da PrograMaria, organização dedicada à inclusão de mulheres cis, trans e outros gêneros minorizados na área de TI, muitas empresas ainda enxergam a diversidade como um “gasto” e não como um “investimento”. “Diversidade é tratada como pauta e não como valor”, afirma ela.
Para a CEO, a sensação é de que as empresas fizeram um projeto ou uma campanha, que não necessariamente resultaram em mudanças significativas nos índices de diversidade ou de cultura de inclusão, mas já “deram check” nessa agenda. “Sair de 10% de mulheres na área de tecnologia para 15% é suficiente? Sem intencionalidade e visão de longo prazo, não conseguimos transformar problemas estruturais”, provoca.
Iana destaca que o movimento de inclusão, que teve um “boom” durante a pandemia, está agora ameaçado com os cortes em iniciativas de diversidade e demissões em massa. Recentemente, a Microsoft anunciou a demissão da sua equipe dedicada à DEI justificando “mudanças nas necessidades de negócios” e outros tantos layoffs afetaram a comunidade.
Mulheres e pessoas negras foram as mais dispensadas, mesmo não sendo maioria nas empresas de tecnologia. Isso, de acordo com Iana, pode ter agravado a falta de diversidade no setor. “Não podemos tratar diversidade, mudanças climáticas e impacto social apenas como uma pauta passageira“, reforça. Para ela, a diversidade precisa ser um valor central, e não apenas um tópico ocasional.
Marise De Luca, conselheira, mentora e coach executiva, consultora de TIC, professora de MBA, voluntária e líder do grupo Mulheres CIO (MCIO) Social, acredita que os movimentos mais progressistas de diversidade e inclusão estão passando por um ciclo de autoquestionamento. “Os resultados financeiros para empresas que adotaram ações em prol da equidade de gênero são inquestionáveis. Então, por que retroceder?” questiona ela.
Para Marise, é possível que tenha havido um exagero na dosagem ou, talvez, uma falha na educação e no letramento social sobre a importância da diversidade e inclusão, não apenas nas empresas, mas desde a infância. Além disso, ela alerta para o risco de movimentos radicais de polarização e individualismo contaminarem o ambiente corporativo.
Para evitar retrocessos nas iniciativas de diversidade e inclusão, Marise destaca a importância de educar os colaboradores para respeitar aqueles que ingressam no mundo corporativo por meio de programas de diversidade. “É fundamental sensibilizar a todos, principalmente as lideranças, para que o ambiente e a cultura se tornem verdadeiramente inclusivos. Precisamos reconhecer e tratar nossos vieses inconscientes e dar voz às pessoas que falam a partir do lugar dos grupos minoritários. Não adianta outros falarem por um lugar que não lhes pertence.”
Impacto de iniciativas de diversidade
Desde sua fundação, a PrograMaria já impactou mais de 200 mil pessoas. Seus cursos e eventos conectam mulheres e outros gêneros minorizados a oportunidades no setor tecnológico. “Temos astronautas, como chamamos nossos alunos, que migraram para a área de tecnologia e hoje encontraram uma carreira em que podem desenvolver o seu potencial”, conta Iana. Ela relata histórias de sucesso, como de ex-alunas que se tornaram diretoras de empresas de tecnologia ou até instrutoras da PrograMaria.
Essas conquistas, segundo Iana, são frutos de um trabalho contínuo de conscientização e apoio, especialmente em um setor no qual a jornada pode ser “solitária e opressiva”. A PrograMaria tem sido um ponto de suporte e fortalecimento, crucial para muitas dessas mulheres.
Já na Mastertech, desde sua criação impactou diretamente mais de 10 mil mulheres por meio de programas de capacitação e treinamentos voltados para a inclusão tecnológica. “Impactamos desde meninas cumprindo medida socioeducativa até altas lideranças das empresas. Os melhores exemplos são sempre nossas alunas que se tronaram professoras de programas da escola que impactam outras tantas mulheres. São meninas e mulheres que vieram de situação de vulnerabilidade se dedicaram nos programas técnicos e que hoje fazem parte da nossa rede de professoras”, pontua Camila Achutti, CEO da Mastertech.
Sobre o alcance da MCIO Brasil, Marise revela que desde sua formalização como associação em 2021, cerca de 6,3 mil mulheres já foram beneficiadas ou participaram dos programas da organização. “Na Academia, oferecemos 2,7 mil vagas em treinamentos e tivemos 340 concluintes. Em mentorias individuais, atendemos mais de 160 mulheres. Os depoimentos de alunas que receberam mentoria e conseguiram se recolocar no mercado são emocionantes. Estamos transformando vidas.”
Desafios estruturais e o futuro da diversidade
Para Iana, o maior desafio atual é, de novo, a falta de intencionalidade e de recursos dedicados a iniciativas de diversidade. Ela reforça que o corte de orçamentos é um sinal de retrocesso, que contraria evidências de que equipes diversas são mais inovadoras e geram melhores resultados financeiros. “Como inovar se todo mundo é igual, com as mesmas referências e as mesmas ideias?”, questiona.
Ela também ressalta que startups lideradas por mulheres, embora recebam menos investimentos, são mais eficientes e rentáveis. Isso revela o potencial inexplorado que a diversidade pode oferecer ao setor, mas que ainda é subestimado pelo mercado.
Camila, da Mastertech, engrossa o coro. Ela observa que em momentos de crise ou incerteza econômica, as empresas tendem a focar em resultados imediatos. “Iniciativas de diversidade, infelizmente, ainda são vistas por muitos como secundárias. Além disso, há uma pressão por fusões e aquisições de programas para cortar custos, o que acaba diluindo a força de iniciativas focadas exclusivamente em inclusão”, observa.
Para Camila, uma das lições que o Brasil pode aprender é a importância de integrar a diversidade como parte estratégica e essencial do negócio, não apenas como um projeto paralelo ou uma “boa prática”. “Precisamos garantir que essa missão seja transversal e esteja enraizada na cultura organizacional, com KPIs claros de impacto e retorno, tanto social quanto econômico”, pontua.
A CEO da Mastertech reitera que o maior desafio que sempre enfrentamos são as barreiras culturais, como a percepção errada de que a tecnologia é um espaço masculino. “E a falta de acesso a formação continuada para mulheres de diferentes contextos sociais ou ainda construções sociais muito enraizadas sobre o que se espera de uma mulher”.
Marise, da MCIO, completa dizendo que as maiores barreiras para incluir mais mulheres na tecnologia estão nas posições de entrada e na recolocação de profissionais mais maduras, que frequentemente enfrentam o preconceito etário. Ela também levanta a hipótese de que posições de menor experiência podem estar, no momento, sendo substituídas por aplicações de IA, mas ressalta que não há dados concretos para sustentar essa percepção.
Mais mulheres em TI
A principal mensagem de Iana para mulheres que desejam ingressar no mercado de tecnologia ou ocupar cargos de liderança é clara: “Podemos ser o que quisermos, ocupar quaisquer lugares que desejarmos: podemos ser CEO, CTO, mãe e dona de casa”. No entanto, ela reconhece que a jornada não é fácil, pois os obstáculos estruturais de uma sociedade machista, racista e transfóbica ainda persistem.
“Vira e mexe ganha a mídia discursos ultrapassados e machistas, mas vemos que a maior parte das pessoas já entende diversidade e inclusão como algo positivo, o desafio é sempre agir com intencionalidade, rever processos, dedicar recursos para mudar o cenário. Não adianta achar a causa bonita, mas não investir recurso nela.”
Para ela, é fundamental que as mulheres busquem apoio e construam espaços nos quais possam ser inteiras e desenvolver seu potencial. “Sempre seremos julgadas, independentemente do que façamos… então que encontremos apoio para nossa jornada e sigamos juntas. E em frente.”
Camila, da Mastertech, cita Grace Hopper, ícone da tecnologia, para incentivar empresas e mulheres na jornada: “Navios são seguros nos portos, mas não foi para isso que eles foram feitos e eu realmente acredito que algumas decisões podem ser mais seguras e confortáveis, mas nem sempre são as que deveríamos tomar”, assinala.
Para as mulheres que desejam ingressar no mercado de TI ou ocupar cargos de liderança, mas ainda têm dúvidas, Marise, da MCIO, tem uma mensagem encorajadora. “O mercado de TI segue oferecendo oportunidades para as mulheres. É preciso coragem, determinação e aprimoramento contínuo. Mas são as competências humanas que vão destacar as mulheres, e nesse aspecto, temos uma vantagem.”
Ela conclui dizendo que, apesar das disparidades salariais e preconceitos ainda existentes, o apoio de instituições como a MCIO Brasil é fundamental: “Mulheres que entendem de mulheres, apoiando mulheres. Venham para a tecnologia, estaremos juntas para apoiar”, finaliza.
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