Demissões nos unicórnios: crise ou oportunidade?
Após anos de bonança, ecossistema brasileiro de startups sofre impacto de juros e sumiço de investidores. Mas quais as perspectivas agora?
* Reportagem originalmente publicada na revista IT Forum de junho de 2022
Em 19 de maio, a Y Combinator, influente aceleradora do Vale do Silício que soma investimentos em empresas como Dropbox, Airbnb, Reddit e Coinbase, deixou um alerta para fundadores de startups que estão em seu portfólio. “Economic Downturn” – ou “Desaceleração Econômica”, em tradução livre – foi o título da carta enviada pela YC à sua rede de empreendedores. Nela, uma mensagem bem clara: as coisas não parecem boas.
“O movimento seguro é se planejar para o pior”, recomendou a aceleradora na nota. “Se a situação atual for tão ruim quanto as duas últimas crises econômicas”, continuou a YC, a sugestão é que startups se prepararem “cortando custos” e “estendendo o fôlego financeiro”. Na prática, a indicação é que as empresas encontrem uma maneira de continuar operações com recursos que já têm em caixa.
O documento foi divulgado em um momento de maior cautela por parte de investidores com o cenário econômico e geopolítico global. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve elevou a taxa básica de juros para o intervalo entre 0,75% e 1%, em um alta de 0,5 ponto porcentual. Essa foi a maior elevação realizada pelo banco central do país norte-americano desde 2020. Uma das maiores preocupações da autoridade monetária estadunidense é com a inflação, que aumenta em um ritmo não registrado há quatro décadas.
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Além disso, há ainda apreensão com o impacto global da invasão russa da Ucrânia, com os fluxos de moeda estrangeira, e com os efeitos prolongados da pandemia da Covid-19 – que ainda afeta pessoas e negócios em diferentes regiões do mundo, apesar do avanço de campanhas de vacinação. O momento é de incertezas no mercado.
Combinados, todos esses fatores reduziram a marcha do venture capital depois de um período de mais de uma década de aceleração. As incertezas levam investidores a buscar opções de menor risco, com retornos menores, mas certeiros. Assim, menos investidores se movimentam para participar de aportes a startups, reduzindo o valor de mercado destas companhias, além do número de acordos e volume de dinheiro que circula no ecossistema.
Brasil também sente efeitos
No Brasil, um cenário similar se manifesta, colocando em xeque o otimismo que já dura anos entre startups nacionais. Com alta liquidez, e motivado pela rápida digitalização de empresas durante a pandemia, o ecossistema de inovação do Brasil viveu um longo período de bonança.
Segundo dados do Distrito, que monitora o segmento brasileiro de startups, US$ 3,1 bilhões foram captados por startups nacionais ao longo de 2020. No ano passado, o valor foi três vezes maior: US$ 9,4 bilhões – um recorde histórico.
Desde 2018, o país também virou pasto fértil para unicórnios, nome usado para identificar startups que superam o valor de mercado de US$ 1 bilhão. O Brasil conta atualmente com 22 empresas neste grupo, sendo que 10 delas – MadeiraMadeira, Hotmart, C6, Mercado Bitcoin, Unico, Frete.com, CloudWalk, Merama, Facily e Olist – ganharam a nomenclatura no ano passado.
“De fato a gente está vindo de um momento muito bom. A gente tem batido recordes de investimento ano após ano nos últimos dez anos. Nos últimos dois, o crescimento foi muito grande. Triplicou, e triplicou de novo em cima do que já havia triplicado”, disse Felipe Matos, presidente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups), em entrevista ao IT Forum. “Quando a gente olha para a região, América Latina, esse crescimento continua acontecendo. Mas no Brasil, em especial no começo deste ano, a gente viu uma certa desaceleração.”
Felipe Matos, da Abstartups. Foto: Divulgação
Nos primeiros quatro meses de 2022 um recuo no volume total de investimentos já foi registrado no mercado brasileiro. De acordo com o Inside Venture Capital, do Distrito, até abril deste ano, o Brasil havia somado um total de US$ 2,3 bilhões investidos em 238 operações. O resultado representou uma redução de 4% quando comparado ao valor dos primeiros quatro meses de 2021, de US$ 2,4 bilhões. O mercado também registrou 238 rodadas no período, quase 13% a menos do que no ano anterior.
“Não acreditamos que haverá uma ruptura na disponibilidade de capital, mas sim um maior cuidado na alocação e uma potencial reprecificação do mercado”, explicou Gustavo Gierun, CEO do Distrito.
Assim como ocorreu nos Estados Unidos, um dos culpados por isso são os juros do país. A taxa básica de juros do Brasil, a Selic, foi fixada pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) em 12,75% ao ano no início de maio. Esse é o maior valor registrado desde janeiro de 2017. Com juros mais altos, opções mais seguras de investimento chamam mais a atenção de investidores – e o capital de risco fica menos abundante.
Gustavo Gierun, CEO do Distrito. Foto: Divulgação
“A taxa de juros afeta diretamente a avaliação das empresas no mercado público, o que direciona as decisões de valuation e agressividade dos investimentos no mercado privado”, completou Gierun.
Grandes startups já começaram a sentir o – e a reagir ao – impacto dessas mudanças. Em abril, a QuintoAndar, a Loft e a Facily, todas integrantes do clube dos unicórnios brasileiros, promoveram uma série de demissões entre seus quadros. Em maio, a startup de gestão de restaurantes Zak também demitiu 40% de seus colaboradores.
[Nota do editor: A onda de demissões prosseguiu após a publicação dessa matéria, alcançando outras empresas, incluindo Vtex e Ebanx, entre outras. Leia aqui.]
Em nota, o QuintoAndar confirmou que as demissões são uma “antecipação” aos sinais de mercado como aumento da inflação, juros e maior escassez de capital.
“Diante desse novo cenário, apesar de termos uma situação de caixa privilegiada e um modelo de negócio consolidado, antecipamos ajustes no dimensionamento dos nossos times, estrutura de custos e priorização de projetos buscando um crescimento mais eficiente e preservação de caixa”, pontuou a empresa.
Já a Loft atribui as demissões à finalização da aquisição e integração da CrediHome, comprada em setembro passado por R$3,43 bi. A empresa adquirida, que passa a ser chamada de CrediHome by Loft, teve 159 funcionários desligados, a maioria de áreas como comercial e operações. Outros 52 funcionários foram transferidos para outras empresas do Grupo.
Em nota, a Facily alegou apena que “busca constante evolução e eficiência” para melhorar a experiência de seu serviço e que “mudanças, inclusive em times, são necessárias para isso”. Por fim, a Zak também atribuiu os cortes ao cenário macroeconômico adverso.
“Vivemos um momento de alta de juros e redução de liquidez que irá impactar a velocidade de investimentos em empresas de alto crescimento. Com isso, os empreendedores irão buscar equilibrar as suas operações a fim de criar sustentabilidade financeira. Ajustes são naturais ao ambiente de negócios”, reforçou Gierun, da Distrito.
O que acontece agora?
Representantes do ecossistema de startups e fundos classificam o momento como de “correção” ou de “ajustes”. Todos descartam, no entanto, a possibilidade de que o segmento de inovação esteja vivendo uma crise no Brasil. Na avaliação deles, o fenômeno observado no país tem relação com a natureza cíclica da economia, em que empresas escolhem expandir ou reduzir suas operações de acordo com as ondas do mercado. O dinheiro ainda está no mercado, mas agora será mais “eletivo”.
“A gente chegou a ter grandes empresas que captaram três vezes no mesmo ano. O dinheiro estava muito disponível em condições muito vantajosas. Isso fez com que empresas priorizassem o crescimento em detrimento de um controle de caixa. Agora o cenário mudou”, afirmou o presidente da Abstartups.
“Dinheiro fácil gera acomodados e oportunidade para quem gosta de gastar dinheiro. Com este momento atual, começamos a entrar na realidade que todo empreendedor no final tem que ter: a econômica”, afirmou João Kepler, CEO e fundador do fundo Bossanova.
Essa realidade deve transformar o comportamento de startups que buscam crescer no mercado, em especial scale-ups e unicórnios. Para Kepler, a hora é delas reforçarem sua organização, controle e governança – e, principalmente, mostrarem esses esforços para os fundos. “As startups têm que chegar na série A já mostrando preto no branco – qual o resultado que vai ter, o porquê está queimando. Fazer mais com menos, como é padrão startup”, reforçou.
João Kepler, do Bossanova. Foto: Divulgação
Para startups early stage, aquelas no começo da jornada, o impacto esperado é menor. Investidores anjos e fundos seed continuam ativos, e novas opções vem surgindo para a garantia de caixa destas companhias. Uma delas é a regulação de crowdfunding, expandida em abril pela Comissão de Valores Mobiliários com um maior limite de captação, o que ajuda a financiar novos empreendedores, e limite de receita bruta anual.
Para os fundos, o novo cenário traz um misto de vantagens e preocupações. Do lado positivo, o cenário é de menor competição por acordos, já que o mercado como um todo deve se desaquecer. “Um mercado um pouco mais restritivo, do ponto de vista de investimento em startups, nos ajuda a ser mais seletivos porque nós não temos aquela pressão, aquela pressa”, explicou o sócio-gestor da DOMO Invest, Marcello Gonçalves.
Por outro lado, levantar capital para compor fundos deve ser um desafio maior. A própria DOMO, adiou planos para uma nova edição do seu DOMO Enterprise, fundo focado em negócios B2B, que deve ser lançado no segundo semestre. “O investidor altamente profissional, que já entendeu que o venture capital tem que estar em sua carteira, está dando um tempo – até porque ele investiu muito no ano passado”, ponderou.
Marcello Gonçalves, da DOMO Invest. Foto: Divulgação
Investidores também estarão mais ariscos neste cenário. “Os investidores estão reclamando dos resultados, porque não tem upside (potencial aumento do valor de um investimento). Então, quando os investidores que botam dinheiro no fundo começam a reclamar da queima de caixa, da falta de novas rodadas para unicórnios brasileiros, se acende o sinal vermelho, disse Kepler, da Bossanova.
Oportunidades no horizonte
“O mercado de tecnologia no Brasil tem um potencial brutal, em qualquer setor ou indústria, e continuará crescendo por, pelo menos, uma década”, anotou Gustavo Gierun, do Distrito. O CEO do hub de inovação ecoa um otimismo que permanece no ecossistema de inovação apesar do momento de incertezas.
No início do ano, o Distrito estimou que os investimentos em startups no Brasil chegariam a até US$ 12,9 bilhões no final deste ano. Se confirmada, a previsão, que é composta a partir de um algoritmo construído em função da evolução do mercado nos últimos 10 anos, representaria uma alta anual mais tímida em relação aos anteriores, mas ainda assim, um crescimento de 34,6%.
Fundada em 2021 a Tivit Ventures é um dos fundos que ainda mantém planos de aporta para 2022. Braço de investimento da multinacional brasileira de tecnologia Tivit, a organização prevê R$ 100 milhões em aportes da para startups com modelo escalável e de alto impacto no Brasil e América Latina até o final do ano.
Eduardo Sodero, da Tivit Venture. Foto: Divulgação
“Aqui na Tivit, nós sempre tivemos uma visão de investir em empresas que complementam nosso portfólio dentro da oferta de ponta a ponta aos clientes. Para isso, apostamos em aquisições de empresas com soluções SaaS (software as a service), com receita recorrente, especialmente voltadas à cibersegurança, cloud, big data, analytics, fintechs e soluções de transformação digital. Nosso foco de atuação é amplo, mas não é qualquer startup”, disse Eduardo Sodero, Chief Strategy Officer da Tivit Venture.
Segundo o executivo, o momento do mercado não atrapalha os planos macro da empresa, mas é um alerta para buscar empresas que tenham foco em eficiência e com modelos de escalabilidade mais consolidados. “Vamos seguir analisando o cenário com a calma que o momento exige, mas buscando empresas que tenham fit com a TIVIT, podendo contribuir e complementar nosso ecossistema”, reforçou.
Até mesmo a Y Combinator, que antecipou um período de dificuldades para startups dos Estados Unidos, ofereceu uma perspectiva positiva para fundadores em sua carta. “Lembre-se de que muitos de seus concorrentes não se planejam bem, mantêm alta queima e só descobrem que estão ferrados quando tentam levantar capital em uma nova rodada. Muitas vezes, você pode ganhar uma participação de mercado significativa em uma crise econômica apenas permanecendo vivo”, escreveu a aceleradora.
Onde há desafios, há oportunidades.