Vale da desigualdade onde moram as big techs aumenta, alerta professor
Silicon Valley Pain Index aponta as "dores" daquele que é considerado o berço da inovação contemporânea
No Instagram, todo mundo é bonito; no Linkedin, bem sucedido; no Twitter, engraçado; e no Facebook, popular. Na realidade, porém, o Vale do Silício, sem o filtro das redes, é um grande abismo social.
Apesar de ser uma das regiões com a maior concentração de riqueza em todo mundo, a área californiana – berço das big tech – vê crescer a desigualdade entre os seus e a distância entre o discurso e a prática das grandes empresas de tecnologia.
Com uma narrativa humanitária de conectar o mundo, gerar mais emprego e promover uma sociedade mais igualitária, as gigantes corporativas ainda deixam a desejar no próprio quintal, onde a população de rua aumentou 9% só em 2020.
Os dados são do Silicon Valley Pain Index, publicado pela San Jose State University, que mensura as disparidades na região. Para se ter uma ideia do quão profundo é esse buraco, o relatório aponta, por exemplo, para o fato de que 14% de seus estudantes estão ou estiveram desabrigados e quase 27% dos locais lidam com insegurança alimentar. A situação se agrava ainda mais se levarmos em conta que 75% dos universitários ali estão empregados, e ainda assim alguns não conseguem se manter na cidade.
“Espero que as pessoas, independentemente de suas posições políticas, concordem comigo quando digo que essa realidade não é nada aceitável”, disse ao IT Forum o Dr. Scott Myers-Lipton, professor de sociologia da San José State University, e responsável pelo relatório.
Curiosamente, a consultoria Wealth-X, especializada na análise e insight de grandes fortunas, colocou, há poucas semanas, o município de San Jose no topo da lista de cidades com a maior concentração de ultra-milionários do mundo, à frente de polos como Nova York e Hong Kong.
Apesar da população endinheirada, os serviços públicos ali, sejam na área de educação ou infraestrutura, deixam a desejar.
“Há quem diga que isso tudo é culpa do governo ou da administração pública”, diz o Dr. Myers-Liton, “mas para essas pessoas eu gosto de lembrar que as grandes corporações da cidade tinham até pouco tempo atrás um teto de 25 mil dólares para recolhimento de impostos. Essa injustiça mudou há pouco tempo, depois de uma campanha organizada pelos próprios alunos da San Jose State University. “Meus estudantes organizaram uma campanha para elevar a taxação desses negócios bilionários”, conta, “com o apoio de 70% a população loca, os universitários conseguiram avançar com a pauta, mas essas empresas e empresários procuraram o movimento e disseram que, se aceitássemos subir o teto para 250 mil dólares, eles não levariam o caso para a justiça”.
A fim de evitar o desgaste legal, os alunos concordaram com o novo teto e os cofres públicos passaram arrecadar 31 milhões de dólares para a cidade. “Se não houvesse esse limite, empresas como Cisco ou Adobe teriam de pagar algo como 2 milhões de dólares em impostos, em vez de 250 mil dólares”, afirma.
Nascido e criado na cidade de San José, o Dr. Myers-Lipton disse que é evidente que o município se transformou, mas certas coisas continuam as mesmas, ainda que veladas. “As big tech adoram promover a diversidade e igualdade, mas se agem conforme falam, porque os negros da cidade ganham a metade do que os brancos?”, e conclui, “a grande verdade é que permitimos a criação de reis”.
Parte do problema, as big tech são convidadas também para fazer parte da solução. Um bom começo seria reavaliar os salários pagos aos funcionários, achatando a distância entre o valor ofertado a altos executivos e profissionais “da base” da pirâmide, nos mais baixos degraus hierárquicos.
“O salário mínimo da área era de 8 dólares por hora, mas depois de uma campanha, também organizada e liderada pelos alunos universitários, esse valor subiu para 10 dólares e agora está nos atuais 15 dólares por hora”, completa o docente.
Ainda assim, uma pessoa que trabalhe de segunda a sexta, em período integral, teria ao final do mês menos de 3 mil dólares, um valor incompatível com o custo de vida médio real na região, onde o valor médio de uma casa está cravado em US$ 1,18 milhão de dólares.
Paralelo a todos esses desafios, o desemprego também persiste na região, derrubando por terra o argumento usado à exaustão pelas empresas de tecnologia, que insistem que mais postos de trabalho seriam criados em decorrência da inovação. Hoje, o Vale do Silício tem uma taxa de 4,5% de desemprego, distante dos 1,8% registrados em maio de 2019 e dos 10,4% anotados em julho de 2020, no ápice da crise do coronavírus.
Apesar de mensurar os problemas (ou as dores) da meca da tecnologia moderna, o Silicon Valley Pain Index não aponta uma direção, que, para muita gente, tem sido a rota de saída. De acordo com a empresa de mudança moveBuddha, o Vale do Silício registrou um aumento de 34% no êxodo urbano da região. Desde setembro de 2020, a plataforma indica que para cada pessoa que se muda para a área, duas saem. Será que há esperança no fim do túnel ou o último a sair apaga a luz?