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Dataísmo, a religião do século XXI

Conheci há dias um jovem taxista completamente convertido ao dataísmo no que diz respeito ao trânsito em Lisboa. Totalmente confiante no seu smartphone, com GPS ligado à Internet, ele sabe, em tempo real, o caminho mais rápido para propor ao seu cliente.

O velho e experiente taxista, dependente de informação via rádio, de amigos e da sua intuição, não sei se conseguirá, na maioria dos casos, um melhor desempenho. A nova intuição artificial baseada no processamento imediato online de dados confiáveis e, em alguns casos, menos precisos mas muitos e de muitas e variadas fontes, vence a velha intuição baseada apenas na experiência pessoal e permite tomar melhores decisões.

Apontar alguns dos impactos que estas novas tecnologias irão ter nas nossas vidas e na sociedade em geral nos próximos anos é o objetivo deste artigo.

O que é o dataísmo?
Quando queríamos saber alguma informação para nos ajudar a decidir, recorríamos antigamente ao consultor, ao professor, ao chefe, ao vendedor, à enciclopédia ou até ao padre da paróquia. Tínhamos como base de conhecimento as grandes religiões, como o Cristianismo, o Induísmo, o Budismo e o Islamismo, bem como as grandes teorias econômicas como o Capitalismo e o Marxismo. Mas muita coisa está mudando rapidamente. O conhecimento sobre o bem e o mal, bem como a tomada de decisões no dia a dia, vêm agora, cada vez mais, com o apoio de alguma aplicação de software e menos do conhecimento adquirido pessoalmente ou, diretamente, de outras pessoas, livros ou instituições clássicas.

Google, Facebook, Linkedin, Wikipedia ou até os sites de meteorologia e o Youtube começam a ser de maior confiança e rapidez do que os antigos métodos de consulta e análise.

Esta nova espécie de religião, apelidada de dataísmo pelo famoso escritor da obra Homo Deus, o israelita Yuval Harari, está entrando lentamente nas nossas vidas. O smartphone e a Internet são as principais ferramentas dos dataístas. 

Desde a melhor receita de pão de ló, ao número de doentes com malária no mundo, no presente minuto, passando pela previsão meteorológica para os próximos dias, pelo fluxo trânsito à minha frente ou pela cotação do bitcoin, tudo está disponível e acessível (quase) gratuitamente a qualquer humano do planeta na sua língua natal, a qualquer hora, em qualquer lugar.

Dizem as estatísticas que já há mais smartphones do que pessoas em alguns países, como o Brasil, o que mostra a dimensão do assunto. E diz-nos o bom senso que, são cada vez mais frequentes os assuntos em que preferimos a opinião de um computador do que de algum humano. E isso vai mudar certamente os nossos hábitos e qualidade de vida.

Estudos de mercado, sondagens e consentimento
Claro que sempre processamos dados e fizemos estudos para apoio à decisão, sobretudo nas grandes empresas e instituições. O que é novo é a massificação, democratização e o acesso de todos os cidadãos, a custos muito baixos, a todo o tipo de dados.

Um político em campanha à moda antiga recorria a estudos de mercado e a sondagens para saber o impacto das suas ações. Hoje recorre às redes sociais e, só porque é uma inovação, já se levantam motins na praça pública contra o Facebook e o Twitter. O que está errado e terá que ser melhorado, no processo de sondagens eleitorais, será apenas o mecanismo de consentimento dos usuários das redes sociais, que terá que ser mais explicito.

O novo regulamento sobre proteção de dados pessoais (o GDPR) vem dar uma ajuda. No entanto se o Facebook, ou outra qualquer rede social, me pedir o consentimento para usar a minha informação pessoal não só para fins publicitários, mas também para sondagens eleitorais, em troca do serviço de contato online com os meus amigos, possivelmente irei aceitar.

Ficar fora das redes sociais tem um custo que posso não estar disposto a pagar. A evolução disto estará, possivelmente, na criação de redes profissionais para sondagens mais “profundas”, em que os seus membros são pagos por disponibilizarem os seus dados pessoais ou pela separação de algumas águas nas atuais redes. 

O negócio do consentimento poderá ser um negócio de futuro e estar emergindo agora a partir dos casos famosos, aparentemente escandalosos, da eleição do Donald Trump e do Brexit, supostamente atribuídos às sondagens e análises da empresa Cambridge Analytica. A entidade reguladora do Reino Unido, por exemplo, acaba de multar o Facebook em 550 mil libras.

Estado, dados e interesse público
O assunto torna-se mais sério quando pensamos em serviços públicos que têm todo o tipo de dados pessoais e podem processá-los no sentido do interesse público ou para fins menos próprios. Por isso o regulamento europeu de dados pessoais deveria ser seguido pelo Estado desde a primeira hora, para dar o exemplo às empresas e à sociedade em geral. Esta ideia de o Estado ter um período de tolerância só para si nesta matéria parece-me completamente sem sentido.

Por outro lado surge agora a possibilidade de alguns serviços públicos poderem ser totalmente prestados por computadores. A declaração do IR é um exemplo de um serviço que vem sendo continuamente melhorado e já apresenta automatismos que caminham nesse sentido. No futuro, o processo de preenchimento será totalmente automático ou assistido por um algoritmo que dará ao cidadão a melhor vantagem e satisfação no pagamento dos seus impostos.

Mas o dataísmo não fica por aqui. Irá desde as consultas jurídicas ou de apoio administrativo em diversas áreas ao cidadão ou empresa, até aos serviços de saúde.

Profissões sob fogo cerrado
Não quero criar pânico, até porque estas questões, por vezes, demoram gerações a serem colocadas em prática, como no caso dos correios e do desaparecimento do papel, com a invenção do escritório eletrônico, que não aconteceu logo, ou o caso das gráficas, com a entrada dos livros em PDF, que ainda não merecem grande adesão dos leitores. Mas, muitas das instituições e profissões que hoje conhecemos como seguras irão desaparecer ou sofrer profundas alterações no futuro. De um modo geral, todo o tipo de trabalho rotineiro tem os dias contados. Mas outro, mais criativo, também está ameaçado agora com a vulgarização da Inteligência Artificial e do Machine Learning. Aqui vão alguns exemplos:

– Transportadoras e Motoristas – Esta talvez a área mais visível do impacto do dataísmo com a anunciada entrada em produção dos veículos autônomos inteligentes. Algo ainda pouco maduro mas onde estão sendo feitos fortes investimentos.

– Escolas e Professores – Em cada vez mais aulas, os alunos já viram previamente um vídeo com a matéria que o professor vai dar, muito melhor explicada. Os cursos online crescem exponencialmente. Alguns são até gratuitos e apenas se paga o exame de certificação.

– Clínicas e Médicos – Cada vez mais há aplicações sofisticadas que nos dão uma previsão de diagnóstico, terapêutica mais adequada e nos acompanham no processo de tratamento. E, por outro lado, há também cada vez mais aplicações para medir os nossos dados de saúde em tempo real de forma a no alertar de desequilíbrios que podem levar a doenças.

– Gabinetes jurídicos e Advogados –  Chegará o dia em que pedir um parecer a um computador merecerá maior credibilidade do que a de um advogado? Qual o novo papel desta classe profissional?

– Contabilidade as a service –  Um dia um professor da Universidade de Coimbra me disse que a contabilidade e os contabilistas tinham os dias contados. O mais interessante é que ele era professor de Contabilidade! Argumentava que da análise de todos os dados digitais de uma empresa, faturas, vencimentos, admissões, despedimentos, notoriedade, etc. se consegue ter uma imagem mais confiável da situação da empresa do que olhando para um balancete. Será que, em um futuro próximo, teremos indicadores muito mais confiáveis, em tempo real, do desempenho de uma organização, pela “simples” análise dos seus dados e do seu histórico digital, em vez do clássico balanço? Ou isto vai demorar gerações?

– Empresas e Gestores – A análise preditiva dos dados em tempo real já permite e continuará a permitir, durante algum tempo, uma vantagem competitiva dos gestores que se apoiarem neste tipo de tecnologia. Mas este tipo de “intuição artificial” que os computadores oferecem aos humanos, tenderá perder o sentido quando a tecnologia se massificar. Tal como na ecologia ou na meteorologia, em que tudo está interligado, o estado seguinte depende do estado anterior e, por isso, as previsões a longo prazo não serão muito confiáveis e as de curto prazo não serão determinísticas.

Novas profissões
Enquanto algumas profissões vão desaparecendo ou alterando a atividade central, outras nascem e florescem.

Todas as áreas ligadas às tecnologias, desde os serviços mais básicos de apoio técnico e comercial, até à programação, pesquisa e desenvolvimento, de hardware e, especialmente, software têm um futuro promissor à sua frente. As plataformas low-code e no-code vão melhorar substancialmente e prolongar o trabalho dos Engenheiros de Software e dos arquitetos de Sistemas de Informação. Mas não faltará muito para que os computadores venham a assegurar grande parte deste tipo de serviços, com maior eficiência que os humanos. Requerendo apenas o cuidado de deixar sempre um botão de segurança (OFF) facilmente acessível em todas as máquinas.

A pesquisa científica em rede, em toda as áreas do conhecimento, atingirá desenvolvimentos a um nível e velocidade nunca antes alcançada.

As atividades relacionadas com as Ciências Sociais, desde a Psicologia, Sociologia, Recursos Humanos,Filosofia, Design e as Artes em geral continuarão a se desenvolver.

Felicidade, longevidade e divindade. Estas são as três áreas apontadas pelo escritor Yuval Harari como as principais ambições do novo Homo Deus. A indústria do Turismo e do lazer em geral, a indústria dos alimentos saudáveis, da agricultura biológica, do cuidado com o animais, das operações plásticas, dos bloggers e youtubers (novos gurus) e são exemplo de como florescem novas oportunidades de negócio e ocupação, uma vez resolvidas as questões básicas de sobrevivência humana.

A área do Ambiente e da Segurança Civil, ou das seguradoras ligadas às catástrofes ambientais, também está gerando novos empregos à medida que o clima do planeta se torna mais agressivo e as notícias, dos mais variados incidentes, correm mundo instantaneamente.

Merece também destaque nesta breve reflexão sobre o futuro próximo o tema Regulação. Desde a financeira, contabilística e bancária, passando pela ambiental, pelos direitos do trabalho  e agora a segurança informática e a privacidade de dados, todas irão gerar novos e diferentes postos de trabalho, auditores, inspetores, consultores e afins.

Infoexcluídos
Claro que haverá provavelmente uma pequena percentagem de infoexcluídos que não querem ou não conseguirão se adaptar ao sistema. Não é preciso nenhum computador com “intuição artificial” ligado  a uma base de dados gigantesca para prever com grande precisão que, para esses, o tão famoso rendimento básico universal será certamente uma medida incontornável para todos os governos, para manter a paz e harmonia na sua região.

Conclusões
Muita transformação humana e social se prevê para os próximos anos. Grande parte das formas de trabalho que conhecemos irão desaparecer ou modificar-se. A inteligência e a intuição artificial serão auxiliares devidamente reguladas. E iremos continuar precisando de humanos de excelência, apoiados por máquinas inteligentes, para trabalhar e para gerir a nossa sociedade.

 

(*) Carlos Costa é diretor de Marketing e Desenvolvimento de Parcerias de Negócio da empresa portuguesa Quidgest

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