Ciência e tecnologia no Brasil carecem de grande estratégia nacional

Plenária no IT Forum > Anywhere resgata 200 anos de história da tecnologia brasileira. Especialistas são unanimes: falta um grande projeto

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2:17 pm - 18 de junho de 2021
itf any dia 03 O palco do IT Forum Anywhere: a frente, Vitor Cavalcanti, do Instituto IT Mídia; atrás, da esquerda para a direita, André Magnelli, Silvio Meira e Domingos Monteiro. Foto: Bruno Cavini

“Em dezembro de 1972 uma lei criou a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] para resolver um grande desafio nacional”, contou Silvio Meira na abertura do terceiro dia do IT Forum > Anywhere. “Claro que vivíamos em uma ditadura e esse desafio não foi compartilhado ou entendido pela sociedade. Não houve discurso, comunicação, colaboração ou construção de um entendimento nacional sobre o porquê precisávamos de uma Embrapa.”

Em boa parte, a história contada por Meira nesta sexta-feira (18) durante a plenária “De 22 a 22: o salto da tecnologia no Brasil” resume um problema histórico no que se refere ao desenvolvimento tecnológico e científico brasileiro dos últimos 200 anos: a falta de uma grande estratégia nacional compartilhada por toda sociedade, incluindo governo, empresas e sociedade civil.

Os desafios existem, mas não são reconhecidos, e a ausência de uma cultura de investimento em ciência e tecnologia colocam alguns dos poucos méritos históricos nacionais nessa seara – como a própria Embrapa – sob ameaça constante. O financiamento de R$ 3,7 bilhões para a estatal destinado no orçamento de 2020, para Silvio, é insuficiente, considerando o retorno que ela dá ao país: R$ 12 para cada R$ 1 investido.

“É uma conta básica, elementar, que a Embrapa passou a fazer porque nós brasileiros começamos a dizer que ela custava muito caro. Sendo que o orçamento total [da estatal] é igual a soma do orçamento de apenas duas universidades federais brasileiras”, ponderou o professor da CESAR School e cientista-chefe da The Digital Strategy Company. “Se nós investíssemos R$ 20 bilhões por ano talvez estivéssemos à frente da pesquisa aplicada por exemplo em proteínas baseadas em plantas. Mas não, temos uma destruição nacional do ideário da ciência e seu potencial.”

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O reconhecimento público de um grande desafio como impulsionador de investimentos e do desenvolvimento da ciência e da tecnologia em uma nação encontra bom exemplo no programa espacial dos EUA e na criação de sua agência, a Nasa. O salto tecnológico dado pelos norte-americanos nos anos 1960 nasceu em boa parte pela derrota sofrida na corrida espacial contra os soviéticos, que lançaram Iuri Gagarin à órbita terrestre em abril de 1961.

Em setembro de 1962, o presidente John Kennedy fez então um discurso célebre – conhecido pela frase “nós escolhemos ir para a Lua” – em que explicitou a aspiração do país de alcançar nosso satélite natural até o fim daquela década. A missão foi bem-sucedida não só porque de fato Neil Armstrong pisou pela primeira vez na Lua em 21 de julho de 1969, mas porque o esforço colocou o país na liderança global em todas as tecnologias digitais pelo menos até o começo da década de 2010.

“O Vale do Silício foi construído em boa parte por meio de incentivos do programa de defesa e energia dos EUA”, lembrou Meira. Ao invés de ir pelo mesmo caminho, o Brasil seguiu pelo contrário, diz o professor, ao editar uma lei de informática que proibia a importação de tecnologia estrangeira. O objetivo, se dizia, era alcançar a autossuficiência em tecnologias estratégicas, mas como fazê-lo sem uma estratégia?

“Não temos estratégias porque não temos grandes desafios, e também não temos orçamentos. Mas é possível tê-los, como mostra o Porto Digital”, disse Meira, lembrando o parque tecnológico da capital pernambucana que ajudou a criar no começo dos anos 2000. E que nasceu da vontade não só de políticos, mas também de empresários, professores e investidores em torno de dois objetivos: revitalizar e retomar o centro histórico de Recife e criar um polo de negócios digitais de classe global.

Hoje o Porto Digital concentra 350 empresas que empregam 13 mil pessoas. Elas emitem cerca de 9% das notas fiscais de serviço na cidade, e concentram 5% do PIB.

“É possível sonhar e ter estratégia de tecnologia e com tecnologia. Mas é preciso estabelecer desafios, ter políticas e compartilhar a visão de mundo que nós de tecnologia temos com a sociedade”, sentenciou Silvio.

Filha do Porto

Se o Porto Digital pode ser mencionado como exemplo de estratégia de desenvolvimento técnico e científico brasileiro, parte desse sucesso passa por companhias como a Neurotech. Segundo Domingos Monteiro, fundador e presidente da empresa, ela nasceu nos anos 2000, dentro do parque tecnológico pernambucano, a partir da percepção de que os dados corporativos poderiam ser instrumentos valiosos para os negócios do Brasil. Se o tema é prioritário para os CIOs em 2021, o cenário era diferente no começo do milênio.

Também se aproveitou da disponibilidade de mão de obra qualificada na cidade, formada em universidades locais como a UFPE, mas que à época acaba sendo empregada em outros grandes centros nacionais e internacionais. O Porto Digital – e empresas como a Neurotech – deram oportunidade para que esses profissionais ficassem em Recife e tivessem um propósito. E também conectou as empresas às universidades, aproximando o conhecimento produzido na academia da resolução de problemas práticos das organizações.

“Como juntamos a inteligência dos dados com a humana para tornar o futuro mais previsível? Esse foi o propósito do modelo de desenvolvimento da Neurotech”, explicou Monteiro, durante a plenária. Mas não foi fácil, contou o executivo, tanto pela pouca preocupação da academia com problemas práticos do mercado como pela cabeça dos empresários, naquela época excessivamente voltada para questões de natureza operacional.

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“Por incrível que isso possa parecer, não me entendam mal, se não soubermos dosar a eficiência operacional ela pode ser um grande inibidor de inovação”, disse. “Em vários momentos da história empresas ruíram porque só se focaram em eficiência e esqueceram do futuro.”

Atualmente a empresa tem mais de 300 funcionários, sendo quase metade mestres ou doutores – e os demais pelo menos graduados ou especialistas, o que comprova a proximidade com a academia. Além disso, com a guinada da empresa para o campo da inteligência artificial, a academia se tornou novamente uma grande fonte de conhecimento.

“Conseguimos fazer essa conexão, inclusive com pesquisas de doutorado e mestrado, para entender como faríamos novas inovações para ajudar as empresas a habilitar e destravar o valor desse ativo que ninguém mais nega”, disse Monteiro, se referindo aos dados.

Passado pela frente

Para André Magnelli, sociólogo, professor e diretor do Ateliê de Humanidades, os últimos 200 anos de história brasileira – considerando o período que começa na Independência, em 1822 – foi baseado em inovação e desenvolvimento tecnológico feito em “pulos”, não em saltos. Ou seja, com avanços tímidos e pontuais desarticulados de uma política ou grande projeto nacional amplo.

“Não existe desenvolvimento científico e tecnológico desarticulado do desenvolvimento do país”, lembrou André, o que no caso do brasileiro significa uma posição periférica frente a outras grandes potências. Diversos pensadores refletiram sobre o tema, e sobre como o Brasil acabou relegado a exportar de produtos in natura de baixo valor agregado, e portanto dependente de inovação vinda de fora.

Mencionando Celso Furtado, André lembrou que o desenvolvimento brasileiro foi feito com base em expansão de consumo para pequenos grupos da sociedade, o que acabou gerando concentração de renda e exclusão social. O próprio Furtado constatou a dificuldade de desenvolver a ciência e a tecnologia nesse cenário.

Se em 1822 imperava a economia extrativista e em 1922 a Semana de Arte Moderna tentou imprimir bases para uma cultura genuinamente brasileira, foi só na década de 1930 que a ideia de nação começou a se estabelecer. Foi quando surgiram de fato as primeiras iniciativas educacionais mais amplas, lembra o sociólogo. E, na década de 1960, durante o regime militar, surgem instituições de fomento importantes, como o CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – e a SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

“Aí vem o desafio dos anos 2000. Toda infraestrutura tecno-cientifica do Brasil está construída, mas é necessário desenvolver e ampliar. Como é possível então fazer com que de fato demos um salto tecnológico ao invés de ficar só saltitando como no regime militar? Essa é a questão”, ponderou André.

Para ele a resposta passa por levar a sério uma perspectiva de desenvolvimento integrado do país, que considere não só o aspecto tecnológico, mas também o social, o político e o científico. É uma tarefa que não pode ser executada sem condições macroeconômicas e um plano de desenvolvimento social e, importante, democracia.

Qual o caminho?

Para Silvio Meira, superar os desafios que impedem o desenvolvimento tecnológico e científico do Brasil passa por um esforço amplo. E que inclui a criação de uma cultura de inovação genuína, que não tente pura e simplesmente replicar modelos de outros países, que têm desafios particulares e diferentes dos nossos.

Outro aspecto importante é “ter uma fé científica na ciência”, ou seja, adotar a dúvida inerente ao método cientifico como método e abandonar o excesso de certezas. “Como isso se conecta ao ambiente de negócios? Ele quer intrinsicamente em todos os cenários minimizar riscos. O que significa para muita gente? Ter certeza. Mas não é isso!”, sentenciou o professor.”

Domingos Monteiro, por sua vez, lembra que nunca o cenário foi tão favorável para uma nova mentalidade por parte das empresas. Há ampla disponibilidade de tecnologias, como a nuvem, uma mudança de padrão de expectativas do consumidor – que espera mais personalização e velocidade –, além da enorme quantidade de dados de negócios disponíveis.

“Temos uma dívida histórica em inovação, mas nunca tivemos tantos habilitadores para fazer a conexão com um propósito relevante e fazer esses saltos”, disse o presidente da Neurotech.

Para André Magnelli, construir um salto tecnológico brasileiro agora depende de construir um ecossistema inovação inclusivo e democrático, que abandone o imediatismo de pensar que o país tem como única vocação a exportação agrária. E abandonar qualquer traço de aversão cultural cientifica, experimental ou tecnológica.

Também melhorar a informação, o conhecimento e a cooperação entre diversos agentes para planejar e agir, tanto em ciência e tecnologia como no desenvolvimento da nação. Modernizar as universidades e instituições de pesquisa, tornar as empresas privadas atores estratégicos e adotar políticas públicas em prol desses objetivos também são passos importantes.

“Não há desenvolvimento nacional sem a construção de políticas sociais. É importante construir um estudo de bem-estar ativo e ativador, que não apenas distribua, mas também ative as capabilidades, fazendo com que o bem estar ative a atividade produtiva do país”, completou Magnelli.

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