“Inclusão deve ser projeto pragmático, não moral”, defende Lilia Schwarcz

Em plenária no IT Forum > Anywhere, historiadora trouxe reflexões sobre racismo estrutural brasileiro e sua influência no cotidiano do País

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2:16 pm - 16 de junho de 2021
IT Forum Anywhere Lilia Schwarcz, Daniel Castanho e Vânia Neves na abertura do IT Forum > Anywhere. Foto: Bruno Cavini

A inclusão deve ser um projeto pragmático, não moral, e passa diretamente pela mão das indústrias. Essa foi a tese defendida pela antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, autora do livro “Brasil: uma biografia”, na plenária de abertura do IT Forum > Anywhere, encontro virtual sob o tema “Redescoberta Criativa – História que Ensina”, que começa nesta quarta-feira (16).

“Eu garanto a vocês que eu defendo a diversidade por um motivo muito positivo: porque mais é sempre mais”, afirmou Schwarcz. “Quanto mais diversos nós formos, mais chances nós teremos, nas nossas empresas, nas nossas escolas, nas nossas universidades, de construir um Brasil mais assemelhado com o que ele é. Construir um Brasil inclusivo, generoso, e aprender com a diversidade, com a pluralidade e com as várias experiências que nos cercam.”

Mas o processo de promoção da diversidade, apontou a historiadora, passa necessariamente por aprendizados com os erros históricos da sociedade brasileira – e também pelo entendimento de como eles ainda influenciam nosso cotidiano político, social e econômico. “Eu não acredito em determinismo histórico, mas acredito que a história pode nos ensinar bastante e, ao menos, dar um bom lembrete”, pontuou.

No centro de apresentação, a historiadora expôs como a base escravagista da sociedade brasileira – de povos ameríndios e africanos – deu origem a um racismo estrutural no País, que extrapola o período histórico da escravidão e se perpetua até hoje nas relações sociais e instituições. “Ele é institucional porque em boa parte de nossas instituições há, evidentemente, uma maioria branca e de origem europeia”, explicou Schwarcz.

A naturalização da violência

Segundo a historiadora, a construção desse racismo estrutural se deu ao longo de séculos, e, principalmente, através da “naturalização” da escravidão na sociedade brasileira. Através de obras de arte que retratavam a violência da escravidão como algo comum, ou de simples anúncios de jornal de compra e venda de escravos, a tentativa sempre foi de que escravos fossem entendidos como bens materiais, não pessoas.

Mesmo após a abolição, explicou Schwarcz, ideais que reforçam ou tentavam ocultar o racismo estrutural brasileiro persistiram e continuaram impregnando diferentes aspectos da sociedade. “A esravidão vai criando uma linguagem que interfere na nossa economia, política, costumes e hábitos. Uma linguagem da hierarquia”, colocou.

Exemplos disso são a tentativa de “embranquecimento” da população através de incentivos à imigração de brancos europeus ao Brasil, e a promoção do mito da “democracia racial” brasileira ao longo do século XX. “Mestiçagem, no Brasil, nunca foi igualdade. Sempre foi mistura com hierarquia, mistura com diferença”, posicionou.

Dos quilombos à revoltas como a dos Malês, em Salvador, em 1835, Schwarcz ressaltou, no entanto, que a luta e resistência também sempre existiram contra a estrutura racista do Brasil. O processo se acelerou durante a Ditadura Militar, através de iniciativas como o Movimento Negro Unificado, e segue até hoje, pautado por inúmeros casos de violência contra negros, como os assassinatos de Beto Freitas e Mariele Franco, e pela forma como a pandemia da Covid-19 afeta populações negras e periféricas de forma desproporcionalmente mais severa.

“Nós vivemos nesse momento de crise, mas crise significa decisão. A decisão está na nossa mão, é hora de decidirmos que projeto de pátria nós queremos ter”, defendeu. Em referência ao bicentenário da Independência do Brasil, a ser comemorado em 2022, continuou: “Que independência queremos celebrar? Uma independência colonial, masculina, europeia? Ou vamos falar finalmente de um Brasil mais real, que nos representa, mais diverso. Um Brasil que surgiu torto, mas a gente pode desentortar”, propôs.

O papel da tecnologia

Também na plenária, Vânia Neves, CTO da Vale, defendeu a questão da inclusão como uma responsabilidade compartilhada por várias esferas, que vão desde o Estado até as empresas – que, na sua avaliação, já estão “falando mais em diversidade e fazendo o seu papel”.

Essa responsabilidade, continuou a executiva, é especialmente importante para indivíduos e líderes que atuam na área de tecnologia, que precisam refletir sobre como suas ações podem impactar a sociedade. “Quando a gente fala em tecnologia, os nossos vieses podem impactar até mesmo os algoritmos que nós criamos”, disse.

Presidente do conselho da Ânima Educação, Daniel Castanho ecoou a fala da executiva, também colocando a tecnologia como parte integral do processo de transformação necessário na sociedade. “Se o que o mundo precisa é coding, tecnologia, quem sabe o caminho para isso seja o ‘decoding’, resgatar nossa humanidade”, pontuou. “No final do dia, a tecnologia é tudo aquilo que torna o mundo melhor”.

O executivo refletiu ainda sobre a importância de se investir na educação, em especial na educação pública, como estratégia de inclusão necessária para o avanço de setores como o da tecnologia. O Brasil, vale lembrar, sofre com um déficit de profissionais que pode chegar a 260 mil até 2024, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação.“Não é porque estamos desprezando todos os talentos que a escola pública não consegue desenvolver?”, questionou.

Lilia Schwarcz reforçou o ponto: “Se nós temos mais de 56% da nossa população que não está integrada às empresas, às instituições, nós estamos perdendo uma mão de obra tremenda”, afirmou, cobrando também ações efetivas de empresas. “Não será na base do checklist. Nós temos que criar censos internos nas empresas, censos que mostrem essa desproporção representacional destas empresas. Precisamos construir modelos de profissionalização dessas pessoas. Precisamos praticar a inclusão para valer”, disse.

A historiadora defende ainda que é necessário “ocupar a tecnologia” e aproveitá-la para promover a questão da inclusão e da luta antirracista de forma ativa, empregando todas as ferramentas disponíveis. “A gente tem que ocupar a tecnologia com boa informação, ocupar com humanidade”, avaliou. “Os setores progressistas dessa sociedade, toda sociedade brasileira, nós temos que ocupar a tecnologia e prover boa educação, a iniciativa das empresas é fundamental”.

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