A relação entre o Telegram e o judiciário brasileiro

Entenda o bloqueio do app no Brasil e as facetas da polêmica decisão do STF

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4:21 pm - 21 de março de 2022
Telegram Telegram

Na última sexta-feira (18) fomos surpreendidos por uma decisão do Ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinando a suspensão do aplicativo Telegram, além de sua retirada das lojas da Apple e Google, bem como imposição de multa aos usuários que driblarem o bloqueio para acesso ao app, com o uso de VPNs, por exemplo.

Para quem atua no combate aos crimes de ódio e crimes eletrônicos em geral, é uma decisão positiva.

Para aqueles que lidam com empresas relacionadas à inovação e tecnologia, esta decisão pode ser prejudicial.

Nesse texto, tenho como objetivo esclarecer-lhe sobre os prós e contras dessa decisão, da forma mais imparcial possível.

Qual o motivo de uma decisão judicial tão drástica?

A determinação do Ministro vem após uma série de tentativas do STF em obter, sem sucesso, o cumprimento de decisões judiciais anteriores por parte do Telegram, que obrigavam o aplicativo a bloquear e apresentar dados de determinados usuários que disseminavam fake news e conteúdos ilícitos.

Conforme consta da decisão do Ministro, a Divisão de Repressão de Crimes Cibernéticos da Polícia Federal havia solicitado ao STF a adoção de medidas mais rígidas em relação ao aplicativo, tendo em vista que o TELEGRAM está em franca ascensão no país e vem sendo largamente utilizado para prática de inúmeros ilícitos, tais como compartilhamento de pornografia infantil e abuso sexual de menores, estelionato, propaganda neonazista, venda de notas de dinheiro falsas, falsificação de documentos e de  atestados de vacinação contra a Covid-19, bem como o descumprimento de requisição do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para cooperação no combate à desinformação (fake news).

Em outras oportunidades, o Ministro já havia solicitado que o Telegram bloqueasse determinados usuários e apresentasse seus dados de conexão e demais informações que possibilitassem a identificação desses indivíduos. Diante da total inércia do app, determinou multa pelo descumprimento da ordem. Tendo em vista o silêncio reiterado do Telegram, agora o Ministro determinou sua suspensão temporária, até que o app cumpra com as ordens judiciais anteriores.

Há fundamentação jurídica para uma decisão desse tipo?

Sim, há. Analisando-se a decisão do Ministro, é nítido que o Telegram há tempos ignora as determinações judiciais brasileiras, e mantém-se omisso nas questões relacionadas a buscar formas de cooperação para combate à desinformação e aos crimes praticados através da plataforma.

Nesse sentido, em virtude da desobediência à ordem judicial, o Ministro pôde embasar sua decisão no Marco Civil da internet: os artigos 11 e 12 obrigam as empresas – inclusive estrangeiras – cujos serviços estejam disponíveis ao usuário brasileiro, ao cumprimento da legislação brasileira e possibilita a gradação de sanções impostas em caso de descumprimento, que variam desde advertência à proibição das atividades no país. Vejamos:

Marco Civil da internet – Lei nº 12.965/2014:

Art. 11. Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros.

(..)

  • 2º O disposto no caput aplica-se mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil.
  • 3º Os provedores de conexão e de aplicações de internet deverão prestar, na forma da regulamentação, informações que permitam a verificação quanto ao cumprimento da legislação brasileira referente à coleta, à guarda, ao armazenamento ou ao tratamento de dados, bem como quanto ao respeito à privacidade e ao sigilo de comunicações

 

Art. 12. Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:

I – advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas;

II – multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção;

III – suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; ou

IV – proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11.

Parágrafo único. Tratando-se de empresa estrangeira, responde solidariamente pelo pagamento da multa de que trata o caput sua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento situado no País.

 

Se o Ministrou determinou o bloqueio do app, seguindo esse raciocínio, qualquer tentativa de acesso ao aplicativo bloqueado passa ser uma infração à sua ordem. Portanto, daí advém a imposição de multa aos usuários que burlarem o bloqueio.

De acordo com a decisão do STF, consequentemente, surge a necessidade de notificar às lojas Google e Apple para excluírem o TELEGRAM no Brasil, impossibilitando usuários brasileiros de instalarem o aplicativo. Essas empresas devem tomar medidas para que os usuários não consigam utilizar o app.

Mas essa decisão é justa? Como fica o usuário? Aplicativos de mensageria podem ser bloqueados pelo Judiciário?

Esse é um ponto bem complexo, polêmico e sobre o qual teremos ainda muito que debater.

Assim como você, eu também tenho mais questionamentos do que respostas.

Mas vamos lá.

A ordem judicial foi dirigida ao Telegram, que nitidamente tem sido omisso e inerte às determinações do nosso Judiciário, e percebe-se que a empresa age da mesma forma em outros países.

Por mais que sejam justas as motivações do STF nesse sentido, no esgotamento de todas as medidas mais brandas cabíveis, há milhões de pessoas e empresas que sofrerão as consequências desse bloqueio, e nem sequer são partes legítimas nesse processo judicial.

Outro detalhe: como fiscalizar milhares de usuários no país e aplicar essa multa imposta?

No Marco Civil da internet não há previsão de imposição de multa ao usuário.

Além disso, a notificação direcionada para Google e Apple, no intuito de excluírem o app de suas lojas e tomarem medidas eficazes para impedir o acesso ao Telegram, abre a possibilidade dessas gigantes da tecnologia efetuarem o chamado kill switch”: apagamento remoto do aplicativo em nossos dispositivos. E a nossa privacidade?…

Temos histórico de bloqueios de apps de mensageria pelo Judiciário Brasileiro.

Lembra-se do caso do WhatsApp?

Em 2016, em uma ação judicial de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 403), o Partido Popular Socialista (PPS) requereu medida cautelar contra decisão do Juiz da Vara Criminal de Lagarto (SE), que bloqueou o WhatsApp.

No mesmo ano, a Juíza da 2ª Vara Criminal de Duque de Caxias/RJ emitiu ordem semelhante, também favorável ao bloqueio do WhatsApp.

Quando os casos chegaram ao STF, o Ministro Lewandowski, cassou a segunda decisão, do Tribunal carioca.

Vale a pena destacarmos um trecho da argumentação do Ministro Lewandowski nesse caso:

“Isso posto, com base no poder geral de cautela, defiro a liminar para suspender a decisão proferida pelo Juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias/RJ, nos autos do IP 062-00164/2016, restabelecendo imediatamente o serviço de mensagens do aplicativo WhatsApp, sem prejuízo de novo exame da matéria pelo Relator sorteado.”

O Relator do caso foi o Ministro Fachin, que votou em 2020 favoravelmente à cautelar:

“Seja como for, a suspensão das atividades do aplicativo ou mesmo sua proibição, mesmo diante da baixa institucionalidade, não caberá para o caso de descumprimento de decisão judicial de quebra de criptografia, mas para um quadro de violação grave do dever de obediência à legislação. Não é preciso minudenciar, mas é evidente que mesmo aqui a sanção deverá observar a proporcionalidade, tendo sempre em conta o direito do usuário de não ter suspenso seu acesso à internet. É certo, pois, que não cabe aos juízes que ordinariamente autorizam as interceptações telemáticas aplicar a sanção prevista no art. 12, III, do Marco Civil da Internet.”

Já a Ministra Rosa Weber, em caso diverso, na Ação Direta de Constitucionalidade – ADI 5527 – que foi julgada em conjunto com a ADPF 403 – também decidiu no sentido de que o Marco Civil da internet não pode ser utilizado a fim de bloquear aplicações de internet pelo descumprimento de ordens judiciais anteriores.

É importante notar que essas duas ações citadas aqui (ADPF 403 e ADI 5527) ainda não foram julgadas em definitivo pelo STF, e ambas estão aguardando parecer do Ministro Alexandre de Moraes, que agora emitiu essa decisão em caso diverso (PET 9935)[ix].

Qual o impacto dessa decisão judicial em termos socioeconômicos?

Certamente isso afeta milhares de usuários e impacta diretamente a atividade de inúmeras empresas e profissionais.

Novamente vemos que é essencial que as empresas e os profissionais possuam seus próprios canais oficiais de contato com o público e clientes, investindo em sites próprios e e-mails em seus próprios domínios, não deixando exclusivamente para terceiros a sua comunicação, divulgação ou portfolio de serviços e produtos. É muito temerário utilizarmos somente de redes sociais ou apps de terceiros para nossas atividades comerciais, profissionais e institucionais. Essas ferramentas devem ser usadas para impulsionar e alavancar nossos negócios, sendo imprescindível que nossa comunicação e divulgação seja focada em um espaço ou plataforma próprio.

Dessa forma, caso sejamos vítimas de quaisquer incidentes ou soframos as consequências de decisões judiciais como essa que vimos aqui, teremos como continuar operando e nos comunicando com nossos clientes.

Esse tipo de decisão também poderá, eventualmente, afetar o desenvolvimento tecnológico no país, tendo em vista que gera insegurança jurídica para o empresariado.

Se pensarmos do ponto de vista dos empresários e investidores: será que pretenderão focar no mercado brasileiro o lançamento de seus aplicativos e soluções inovadoras, se muitas vezes poderão correr o risco de sofrerem um impacto econômico advindo de decisões judiciais desse tipo?

Por outro lado, é dever das empresas de tecnologia estarem sempre alinhadas ao ordenamento jurídico dos países onde prestam serviços, bem como atender às determinações judiciais recebidas.

Qual o impacto dessa decisão na fundamentação de ordens judiciais proferidas por outros Juízes?

Outros Magistrados também se pautam por decisões do STF e isso poderá gerar um efeito cascata potencialmente negativo em situações semelhantes, envolvendo aplicativos e plataformas tecnológicas, criando-se uma barreira ao desenvolvimento tecnológico e à inovação em nosso país.

De outra maneira, também dá liberdade aos Juízes ao decidirem sobre casos que envolvam crimes eletrônicos perpetrados através das plataformas tecnológicas, evitando-se assim, danos maiores.

É nítida e real a utilização de plataformas para práticas de ilícitos e os índices de crimes eletrônicos só aumentam. É essencial que possamos combater a criminalidade informática. Mas será que essa via seria a única para solução desse conflito?

Do ponto de vista do Ministro Alexandre de Moraes, creio que é importante também compreendermos que qualquer decisão que ele tomasse, nesse caso, seria polêmica e traria consequências para ambos os lados. Deixar de impor sanções à uma empresa que é inerte e omissa às decisões do Judiciário significa propiciar terreno fértil aos ilícitos que vem ocorrendo através da plataforma e prejudicam milhares de pessoas e empresas. Determinar o bloqueio do app, mesmo que temporário, também gera impactos negativos à sociedade como um todo.

O Ministro suspendeu o bloqueio, após resposta do Telegram. Quais serão os desdobramentos disso?

Ao tomar ciência da decisão judicial do Ministro, o proprietário do Telegram, Pavel Durow, finalmente se manifestou, alegando que não havia recebido os e-mails anteriores enviados pelo STF. Fez seu mea culpa, reconhecendo a negligência e se dispôs a cooperar com o Judiciário brasileiro, nomeando representante no Brasil.

Diante disso, e com a comprovação do cumprimento das decisões judiciais anteriores pelo Telegram, o Ministro suspendeu a decisão do bloqueio. Essa revogação da suspensão temporária do app veio dentro do período de 24 horas concedido ao Telegram para cumprimento de uma série de determinações judiciais.

Em resposta, o Telegram se dispôs a cumprir uma série de medidas que adotará para combater a desinformação, tais como:

  • monitoramento manual diário dos 100 canais mais populares do Brasil;
  • acompanhamento manual diário de todas as principais mídias brasileiras;
  • capacidade de marcar postagens específicas em canais como imprecisas;
  • restrições de postagem pública para usuários banidos por espalhar desinformação;
  • atualização dos Termos de Serviço;
  • análise legal e de melhores práticas;
  • promover informações verificadas.

Enquanto debatemos a questão e nesse meio tempo, alguns se posicionam de um lado ou de outro, só existe um personagem que continua lucrando, em qualquer situação: o aplicativo e seus proprietários.

Finalmente esse impasse, por enquanto, parece ter se resolvido, de modo muito rápido, mesmo que ainda estejamos somente no início dessa história. O Ministro fez valer suas fundamentações, amparadas pela Constituição Federal e pelo Marco Civil da internet; e o Telegram terá que cumprir a legislação nacional, como qualquer outra empresa – brasileira ou estrangeira – que presta serviços aos usuários em território nacional.

Certamente desse impasse sairá algum termo de ajustamento de conduta ou acordo entre o Telegram e o STF.

Esperamos que o Judiciário, a sociedade e o mercado aprendam com os fatos, e que não seja mais preciso se chegar a esse ponto.

Esse tipo de situação traz desgastes e gera insegurança jurídica e política, e pode ser evitada, se cada um cumprir o seu papel: empresas, usuários e Judiciário.

*Gisele Truzzi, advogada especialista em Direito Digital e Segurança da Informação, sócia-fundadora de Truzzi Advogados

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