Da realidade virtual à realidade radical
Executivo reflete sobre alguns pontos tratados no SXSW, maior encontro de inovação do mundo
Aprendi em educação infantil – e quem tem filhos sabe bem – que para que haja um bom desenvolvimento e paz na rotina de uma criança, esta deve ser temperada entre momentos de expiração (atividades extrovertidas, idealmente em ambiente aberto) e inspiração (atividades introspectivas, idealmente em ambientes fechados). Refletindo um pouco sobre minha função como gestor, ou gestor de gestores, passo quase o tempo todo em modo expiração – ou transpiração – tomando decisões, em reuniões, falando e apontando caminhos.
Mas para um bom equilíbrio mental e desenvolvimento profissional, é essencial ter tempos de inspiração, e foi isso que o SXSW promoveu em mim. Dias de encontrar gente, pensamentos, criações e criaturas diferentes e inspirativas. Para quem não sabe, o SXSW é o maior festival de inovação do mundo, que se propõe a reunir gente criativa de áreas e lugares dos mais diversos.
Com uma agenda que reúne música, cinema e tecnologia, dentre tantas outras coisas, o festival é um verdadeiro caldeirão de ideias. Em 2019, foram representados mais de cem países com milhares, sim milhares, de atividades. Só apresentações musicais são mais de 2 mil. Com o tempo – já são 32 edições! – o evento antes de natureza (contra)cultural, somou tecnologia e hoje todas as grandes marcas de softwares estão presentes.
Dentro desse mix, algumas coisas saltam aos olhos e ouvidos, sendo a principal delas, na minha vivência, a noção de que no fim das contas, apesar das artificiais inteligências que existem por aí, tudo diz respeito a pessoas. Após as BigTechs entrarem no holofote mundial pelo “vazamento” de informações individuais e a influência destas nas eleições dos EUA, um grande debate se estabeleceu: seria a tecnologia neutra? Seus efeitos e modelos poderiam impactar também negativamente a vida das pessoas?
Em geral, partimos quase que naturalmente da premissa que a tecnologia é boa para o mundo, apesar de sabermos que o ser humano pode “pervertê-la” para uso pouco ou nada nobre. Mas a verdade é que nós que trabalhamos com tecnologia, quando do desenho e concepção de produtos e modelos, investimos pouco tempo pensando nas potenciais consequências não positivas do uso de nossas soluções.
Produtos digitais são, em essência, desenvolvidos por pessoas e para pessoas. Logo, sua realidade digital afeta diretamente a realidade real. Neste sentido, o ser humano como centro do design, em sua dimensão humanística (humanitarian design), bem como a intencionalidade nas micro e macro interações estão sendo pensadas e repensadas para entender o lugar da tecnologia e seus grandes conglomerados neste “novo” tempo.
Laboratórios de Realidade Virtual são capazes de representar o mundo em 3D e permitir experiências absolutamente incríveis. Carros voadores também foram objeto de longa discussão e como isto será regulamentado nas grandes cidades do mundo, além da ampliação da capacidade de máquinas em criar arte e imitar a criatividade humana. Ao mesmo tempo, o diretor de cinema brasileiro Fernando Meirelles apresentou ao mundo um documentário sobre uma comunidade quilombola no Pará, cujo líder está ameaçado de morte e não acredita que chegará à 2020 após descobrirem diamante na terra de seu povo.
O mundo é realmente um lugar bem diverso e desigual: enquanto eu testava o novo par de óculos escuros da Bose que já vem com caixa de som embutida e atende o telefone com um toque, Claudinete Colé, quilombola Paraense, lutava para – também por meio da tecnologia – expor seu dilema ao mundo e angariar fundos para sua gente.
Pessoalmente, não sei se tecnologia é boa ou ruim; uma coisa, todavia, tenho certo – ela é meio e não fim. E pode ser instrumento de transformação, quando a desenhamos e colocamos uma dose adicional de intencionalidade nas nossas criações.
Ao pegar o Uber para o aeroporto, conheci um refugiado da Eritreia, país da África Oriental que faz fronteira com o Sudão, que vive há quase 30 anos sob uma brutal ditadura. Este jovem de 28 anos disse que o país predileto dele é o Brasil e passou por aqui no caminho para os EUA.
Foram quase três meses da fronteira do Peru até os Estados Unidos, passando por quatro dias na selva Colombiana, onde comeu mato para sobreviver e, depois, seis meses de cárcere na fronteira americana aguardando julgamento para seu pedido de exílio político. Teve a sorte de receber o acolhimento que buscava e encontrou no Uber uma boa plataforma para reiniciar sua vida profissional, ideal para quem não falava a língua. Para ele, ao menos, a tecnologia possibilitou um novo começar. Cabe a nós direcioná-la no caminho de um novo futuro.
*Rafael K. Barbosa é CEO da Bionexo