No mundo das startups, boa governança ajuda a separar joio do trigo

Empresas mais resistentes a diferentes tipos de crise são as que adotam as boas práticas de governança para alicerçar crescimento

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10:15 am - 31 de agosto de 2022
Foto: Shutterstock

A partir do segundo trimestre de 2022, a imprensa especializada foi inundada por artigos dando conta de uma série de demissões em massa no mundo das startups. Essas dispensas começaram por causa de um cenário conturbado, que se iniciou como consequência da pandemia de COVID-19, sendo agravado pela Guerra da Ucrânia, levando a um quadro de inflação global e alta de juros.

Num cenário como este, os investidores costumam diminuir seu apetite para o risco, preferindo alocar seus recursos em ativos mais conservadores, como a renda fixa e títulos do tesouro americano, por exemplo. Essa tendência teve como consequência uma diminuição do fluxo de dinheiro para financiamento do crescimento das startups, que são negócios particularmente afetados por momentos de crise, pois apresentam um risco muito maior do que empresas tradicionais, uma vez que ainda estão em um estágio inicial dos ciclos da vida de seus negócios. Como consequência, algumas delas tiveram que promover ajustes em prol da sobrevivência. A face mais visível dessas adequações foi a demissão em massa de profissionais antes seduzidos por salários diferenciados, planos de stock options e promessas de crescimento acelerado.

Até 2021, período em que foram batidos recordes de investimentos em empresas de tecnologia em vários estágios, assistimos ao crescimento acelerado de várias startups, algumas delas com uma forte orientação para buscar o crescimento a qualquer preço. Nesse período, empreendedores eram elogiados por estarem “queimando caixa” na busca pelo pote de ouro no fim do arco-íris. Os recursos obtidos com as várias rodadas de investimento e com as aberturas de capital eram utilizados para financiar esse crescimento acelerado, inclusive com a contratação das mentes privilegiadas que ajudavam a construir empresas intensivas em conhecimento.

De fato, algumas startups em estágio mais avançado de desenvolvimento (late stage), alimentadas por grandes rodadas de investimentos, aumentaram muito os seus times. Acontece que, com o crescimento da demanda, profissionais das áreas de tecnologia, conteúdo, design e marketing com o perfil adequado para compor os times foram ficando cada vez mais escassos e seus salários passaram a aumentar significativamente.

Com a mudança de cenário ocorrida no início de 2022, evidenciada pelo aumento da taxa de juros e pela consequente diminuição na velocidade de alocação dos recursos para investimento, algumas daquelas startups late stage que haviam feito um grande número de contratações precisaram fazer ajustes. Em alguns casos, os ajustes foram radicais, levando à redução de contratações e até mesmo à dispensa de profissionais que antes disputavam ferrenhamente com outras empresas do mercado. Parte da mão de obra especializada, antes contratada a peso de ouro, agora busca recolocação no mercado. A palavra da moda passou a ser o tal “breakeven”, que se traduz em buscar o ponto de equilíbrio entre a receita e os custos e despesas operacionais.

Como tradicionalmente ocorre em momentos de crise, por um lado a situação atual representa perigo e luta pela sobrevivência para muitas startups, mas, por outro, é uma grande oportunidade para aquelas que fizeram o “dever de casa”, cuidaram dos fundamentos do negócio e hoje estão preparadas para passar pela crise e sair fortalecidas. Mas, a pergunta que emerge é: o que diferencia as que sofrerão com a crise e sucumbirão das que aproveitarão as oportunidades e seguirão mais fortes? A resposta é fácil: Governança!

De fato, como podemos ver no Caderno Governança Corporativa para Startups e Scale-ups, publicado pelo Instituto Brasileiro de Governança (IBGC), “a governança corporativa contribui para alavancar valor para a empresa, ajudando-a a caminhar mais longe, mais rápido e com menos risco. A governança também auxilia a pavimentar o acesso da startup e da scale-up à captação de recursos de investidores, o que muitas vezes influencia a velocidade e a consistência de seu crescimento”.

Usando o próprio caderno como referência, podemos verificar algumas práticas cuja aplicação ajudaria na construção de startups mais resilientes e com maior chance de sobreviver em momentos de crise, tais como: a) realização periódica de um planejamento estratégico e orçamento, como também a estruturação de uma rotina de acompanhamento; b) estruturar o processo de gerenciamento de riscos e incorporá-lo ao planejamento estratégico; c) manter as demonstrações financeiras em dia; d) sistematizar processos essenciais do negócio; e) criar um plano de sucessão para os principais postos da empresa; e f) estruturar um conselho consultivo ou de administração atuante. As startups que conseguirem construir os fundamentos dos quatro pilares da governança (Estratégia & Sociedade, Pessoas & Recursos, Tecnologia & Propriedade Intelectual e Processos & Accountability) serão as grandes vencedoras.

É notório que as empresas mais resistentes a diferentes tipos de crise são as que adotam as boas práticas de governança para alicerçar seu crescimento. Para essas, até mesmo a onda de desligamentos em massa pode ser vista como uma oportunidade, pois está colocando no mercado profissionais altamente qualificados, amadurecidos pelos acontecimentos e que agora percebem que o crescimento sustentável e geração de lucros de “cabras da montanha”** talvez sejam mais atrativos do que os salários irreais pagos pelos unicórnios***.

Assim, acredito que a implementação de uma boa estrutura de governança corporativa, baseada nas práticas aqui citadas e em outras contidas no Caderno Governança Corporativa para Startups e Scale-ups do IBGC, ajudará a separar o joio do trigo nos momentos difíceis, fazendo com que as que alicerçam seu crescimento em bons fundamentos consigam passar pelas crises, aproveitar as oportunidades geradas nesses momentos e sair ainda mais fortalecidas.

* Haim Mesel tem uma carreira de mais de 25 anos nas áreas de tecnologia e inovação, atuando como gestor de venture capital desde 2008. É sócio fundador da Triaxis Capital, gestora de fundos de investimento de venture capital, participa do conselho de administração de várias startups e scale-ups e é membro da Comissão de Startups e Scale-Ups do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC)

** “cabras da montanha” — é a forma como chamamos, no Fundo Criatec 2, as startups resilientes e que conseguem escalar a montanha de maneira sustentável até o topo, mas que não necessariamente se tornarão unicórnios.

*** “unicórnio” é o nome dado a startups avaliadas em mais de U$ 1 bilhão.

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