A maior estupidez que já fiz, meu maior erro!
“Errar é humano”, diz o ditado. E é mesmo. Normalmente as pessoas não gostam de falar de seus erros. Fogem deles, evitam comentá-los. Mas acredito que compartilhar experiências é um dos objetivos de minha missão como colunista, por isso contrario estas tendências. O que vou relatar, por mais incrível que pareça é a mais pura expressão da verdade. Foi uma bobagem astronômica que eu fiz. Como diz um amigo, uma idiotice de proporções épicas.
Não pretendo me defender, mas considero esta história tão absurda e estúpida pelas conseqüências incríveis, pelos desdobramentos que se sucederam. E como acontece nestas situações, eu estava cheio de ótimas intenções, mas isso não é desculpa. Fui conduzido de certa forma ao precipício por mim mesmo e por outras pessoas. Mas também não quero me eximir de culpa por isso. Mas vamos à história. E faz tempo, muito tempo…
O ano de 1986 estava no começo. Foi meu primeiro ano como profissional de informática. Fora estagiário na área em 84 e 85. A mesma empresa acreditou em mim. Contratou-me, efetivou-me, em janeiro de 86. Posso dizer que comecei junto com a micro-informática. A propósito, na empresa a grande maioria de profissionais de TI era analista e programador de Mainframes. Olhavam aquela diminuta área de micro informática com grande desdém. Chamavam-nos de “microlândia” que era a junção de “microcomputador” com “Disneylandia”. Acho que deu para perceber o “cartaz” e exíguo respeito que tínhamos… Literalmente nenhum. Eu também tinha feito alguns cursos de ferramentas de mainframe por determinação da empresa. Em nossa equipe (Sistemas de Apoio à Decisão-SAD) nos esforçávamos para prover soluções rápidas e ágeis para os usuários usando os “poderosos” PCs da época (PC XT 4.77 Mhz e HD de 10 Mb). E até que conseguíamos usando os então avançados e revolucionários dBase II, Lotus 1-2-3, Clipper e similares.
O Brasil vivia uma época de inflação galopante, entre 30% e 40% por mês, como tantas outras pelas quais passou o país. Acho que foi no final de fevereiro que o recém empossado presidente José Sarney (sim, esse mesmo do recente escândalo do senado) decretou um plano econômico “revolucionário” que foi chamado de “Plano Cruzado”. Os preços de todas as mercadorias foram congelados. Estavam proibidas as alterações de preços de toda forma no país. Como se fosse possível acabar com inflação por uma lei… A história provou que isso não deu certo.
A empresa na qual trabalhava tinha obtido uma permissão especial para realizar ajustes nos seus preços após apresentar para o governo algumas planilhas de custos. Poucas conseguiram incluindo a … Não vou citar seu nome, mas era uma empresa muito grande e que fazia parte de um grupo ainda mais poderoso à época, o grupo Bunge Y Born.
Mas então, qual foi a minha grande besteira?? A empresa tinha antecipado algumas poucas centenas de faturamentos antes do governo ter permitido aquele reajuste final de preços “aos 48 minutos do segundo tempo”. Estes faturamentos ficaram “errados”. Afinal a empresa poderia ter cobrado mais e estava perdendo dinheiro. Seria necessário emitir poucas centenas de notas fiscais complementares para estes clientes. A equipe responsável pelo sistema, feito em mainframe foi consultada. Segundo eles seria impossível fazer isso no prazo requisitado de um ou dois dias. Nessa época os projetos de mainframe eram recobertos de uma áurea mística. Nada acontecia sem um grande levantamento e estudo prévio, um anteprojeto, um projeto, elaboração da documentação para programação, etc. Por mais simples que fosse, nada se realizava em menos de 3 meses.
Resumindo, os “donos do sistema” posicionaram-se com um solene “tô fora dessa”. Falando de outra forma, “tiraram o deles da reta”. Meu chefe à época era um sujeito genial, inteligentíssimo, super comprometido com as soluções baseadas em microcomputadores. Hélio era seu nome. Seu chefe direto era da “patota” do mainframe. Mas o diretorzão de TI, ou seja, o chefe, do chefe do meu chefe era outra figura ainda mais genial, brilhante e mente aberta. Visionário que era, já previa o lugar que os PCs iriam tomar no futuro. Barroso era seu nome (também chamado de Barrosão). Ele em conversa direta com Hélio (meu chefe) analisaram muito, se com a ajuda dos PCs não poderíamos tentar resolver o problema. Hélio topou o desafio e dividiu o assunto comigo. Pegamos uma parte dos dados e montamos juntos diversas planilhas no Lotus 1-2-3 para analisar as diferenças.
Depois de muito quebrar a cabeça com as planilhas, tivemos uma “grande sacada”. Chegamos à conclusão de que não seria necessário recalcular todas as notas fiscais para chegarmos aos valores complementares. Pegaríamos um atalho. Usando um simples cálculo de “regra de três”, uma proporção, conseguiríamos descobrir todos os novos valores e, por conseguinte mandar a cobrança das diferenças para os clientes. Mas na época obviamente não havia Internet Banking e apenas as grandes empresas podiam usar um sistema de envio de fitas magnéticas para os bancos e estes faziam a impressão das notas, boletos e enviavam para os clientes. Eu fora treinado em uma ferramenta de mainframe chamada EasyTrieve. Um ambiente infinitamente mais amigável que a tradicional programação em COBOL que se usava habitualmente no mainframe. O tal EasyTrieve (um nome oriundo de EASY RETRIEVE-fácil recuperação de dados) era mesmo “porreta”. Poder-se-ia dizer que tinha algumas semelhanças com o ambiente dos PCs.
Lembro-me do Hélio e do Barroso me perguntando, “dá para fazer?”. Eu topei. Considerando tudo que eu tinha visto do problema, com minha “larga experiência” (dois anos e dois meses trabalhando em TI e apenas dois meses como funcionário), senti-me capaz de realizar a tarefa. Trabalhamos juntos, eu e meu chefe, mas toda a parte de programação fui eu que fiz. Entre programar, testar, conferir, as horas foram passando. Somente perto da 04:00 da manhã chegamos ao final! Conseguimos gravar a fita para ser enviada para o banco. Vitória!! Vitória!!
Missão cumprida!! Dia seguinte, cheguei apenas no final da manhã na empresa após descansar um pouco. Percebi os olhares que se misturavam: incredulidade, admiração, inveja (as pessoas me acharam petulante por ter me metido no assunto que eles não quiseram assumir), e assim por diante. Nossa equipe teve seu dia de celebridade. De fama. Mas afinal o que deu errado?? Cadê a bobagem de proporções bíblicas??
Os cálculos foram revistos, conferidos, reconferidos. Tudo parecia certo. Mas… Sempre tem um MAS. Um pequeno DETALHE nos passou despercebido. E ninguém nos avisou sobre este pormenor. Vou explicar. Das notas reemitidas, muitas delas se referiam a vendas a prazo. Com o congelamento total dos preços houve também uma queda forte e instantânea da taxa de juros. E daí? A catástrofe começou neste ponto. Como as notas tinham sido calculadas antes do “plano verão”, embutiam juros expressivos. O governo autorizou um reajuste nos preços que era inferior ao juro embutido nas notas. Assim ao recalcularmos os novos valores para os produtos, remover os juros anteriores e aplicar a nova taxa de juros, algumas notas complementares ficaram com valores NEGATIVOS!!!! Casualmente e infelizmente nos testes que fizemos naquela longa madrugada, não tropeçamos em nenhum caso desses.
O banco (não me lembro que banco era-não lembro mesmo) ao processar a fita magnética, imprimiu as notas, os boletos e enviou para os clientes. E não havia no programa do banco naquela época nenhuma consistência que previsse valores menores do que zero. Passou batido. Muitos clientes receberam notas fiscais e boletos bancários com valores NEGATIVOS!!
Foi uma hecatombe, uma catástrofe!!! Clientes ligando loucos da vida, sem entender nada. Querendo receber dinheiro de volta, afinal o boleto a pagar era negativo!!! Foiuma confusão dos infernos!! Ok, alguns clientes, vários, também receberam notas e boletos corretos, mas nessa hora, frente a esta situação, isso não conta. Fui condenado por todos os “valentes” programadores e analistas de mainframe e ridicularizado. Quando eu passava ouvia comentários do tipo “vamos imprimir umas notas negativas hoje?”.
Ao longo de toda a minha carreira profissional eu cometi dezenas de erros, dezenas de enganos. Mas nenhum com conseqüências tão avassaladoras e funestas como as que ocorreram neste episódio. Eu poderia me defender, afinal não era eu o “dono” do sistema, não conhecia suas entranhas, não conhecia as estruturas de dados e quem conhecia “pulou fora”. Mas eu talvez repleto daquele excesso de autoconfiança, comum no início de nossas carreiras, “meti o pé pelas mãos”. Assumi uma responsabilidade e um risco acima das minhas possibilidades. Por outro lado achei que postura do Hélio e Barroso foi ousada e determinada. Também heróica, “peitando” a turma do mainframe que se recusou a fazer algo. Não fosse o problema com a taxa de juros todos seríamos lembrados como heróis e não execrados pela fuzarca que aprontamos.
Ambos me apoiaram incondicionalmente. Não sofri conseqüência alguma por conta do ocorrido. Mantive meu emprego e segui minha carreira na empresa e no grupo por vários anos (oito anos no total para ser exato). Progredi e aprendi muito nos anos seguinte, sou muito grato por este período. Ficou o escárnio e o deboche por parte da equipe de programadores e analistas de mainframe que já nos consideravam uma piada, a “microlândia”.
Não me lembro como foi resolvida a situação. Também não tenho certeza de todos os detalhes da história. Se a memória me traiu, posso ter me enganado em algum ponto. Mas essencialmente foi isso que aconteceu. Advogados devem ter sido envolvidos. Muita negociação, muita conversa, muito desgaste. Mas no final todos sobreviveram.
Meu antigo amigo Aleksandar Mandic tem uma coleção de frases muito interessantes. Uma das frases que ele tem pregado na parede da sala de seu escritório diz algo do tipo “quem faz pode errar, quem não faz já errou” . Seria esta afirmação um consolo para meu maior erro, a maior estupidez que já fiz??
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PS2: estou fora de São Paulo e com extrema restrição de acesso à Internet. Assimserá muito difícil responder aos comentários até 4a ou 5a feira. Vou tentar, mas só garanto a partir de 4a ou 5a. Acho que a discussão pode ser legal.