Silvana Bahia: ‘mundo tecnológico e questões sociais não podem ser divididos’

Para codiretora do Olabi, apesar de ainda haver muito trabalho pela frente, inclusão da população negra no mercado de TI avançou

Author Photo
8:30 am - 19 de novembro de 2021
Silvana Bahia, Olabi Foto: Divulgação

“Qualquer tecnologia, da mais analógica à mais revolucionária, sempre vai ser social, pois é fruto de uma escolha humana”, pondera Silvana Bahia, codiretora executiva da Olabi – organização social com rede no Rio de Janeiro cujo grande objetivo é democratizar o acesso à tecnologia por parte de grupos historicamente excluídos. A população negra é uma delas, e apesar de ainda haver muito o que fazer para atingir alguma igualdade no Brasil quando se trata de oportunidades, já há o que comemorar no Mês da Consciência Negra.

“Quando a gente olha para o mercado e vê a discussão sendo feita, é um passo à frente, sem dúvida. Mas temos muito a fazer, porque o problema que queremos resolver é muito grande”, diz a ativista e ehttps://itforum.com.br/wp-content/uploads/2018/07/shutterstock_528397474.webpsa ao IT Forum, em entrevista por telefone.

A Olabi, que Silvana codirige com Gabriela Agustini, surgiu em 2014 para entender a diversidade no mercado de tecnologia, e como o digital afeta a vida da sociedade. Eram discussões não tão populares naquele ano, mas que tem ganhado força, principalmente após 2020, com a pandemia de COVID-19 e a emersão de um mundo digital quase onipresente.

Leia também: Inovação é sobre cultura organizacional e não apenas tecnologia

“Trabalhamos por causas. Desenvolvemos metodologia, campanhas, estudos, formações, tudo em prol das causas que a gente trabalha”, explica Silvana, mencionando um dos muitos projetos desenvolvidos pela organização: “No caso do PretaLab a gente trabalha com essa ideia de estimular o protagonismo de mulheres negras em espaços de poder, principalmente em tecnologia e inovação.”

O projeto tenta tanto mapear a inclusão de mulheres negras no mercado brasileiro de tecnologia e inovação – “porque dados oficiais até hoje não existem, e se não temos dados sobre uma coisa é como se essa coisa não existisse –  como formar esse público para inserção no mercado de trabalho. Desde 2020 foram quase 300 mulheres capacitadas. O PretaLab também trava diálogos com empresas para desenvolver pesquisas e prestar consultorias sobre diversidade e inclusão.

Para ela, apesar de empresas e governos terem em alguma medida despertado para a necessidade de promover diversidade e inclusão, é na sociedade organizada que está a grande potência. “A participação da sociedade civil é fundamental para construir uma política efetiva – não só pública, mas privada também, de regulação de mercado.”

Confira a seguir os melhores momentos da entrevista com Silvana Bahia.

 

IT Forum: Que cenário está desenhado no Brasil quando se trata de raça e tecnologia?

Silvana Bahia: Ainda é muito ruim. Mas a gente trabalha todo dia para que melhore. De alguma forma acho que tem melhorado no sentido de que essa discussão começar a existir. Só disso acontecer já considero uma coisa importante, um avanço. Mas a gente ainda está muito longe de ter uma equidade de fato pensando gênero e raça no mundo da tecnologia.

 

IT Forum: Por que pessoas negras ainda são tão excluídas desse mercado? São pela mesma razão estrutural pela qual são excluídas de todos os outros segmentos?

Silvana: Eu acho que não tem uma razão específica. É um reflexo de uma desigualdade estrutural no Brasil, e óbvio que ela também se reproduz quando estamos falando de um lugar tão poderoso como é o da tecnologia hoje.

 

IT Forum: No dito “mercado de inovação”, no qual estão as startups, o cenário é melhor ou pior?

Silvana: Bom, depende do que a gente vai chamar de startup. Se formos entender startups pelo conceito de “empresas que trabalham com inovação, tecnologia e conseguem apoio financeiro para colocar suas ideias em prática”, é um abismo muito grande. Se a gente achar que é empreendedorismo, a gente vê que no empreendedorismo as pessoas negras se destacam muito no geral. Mas por quê? Aí tem algumas variantes, não dá para pensar que é 8 ou 80. As mulheres negras são as que mais empreendem no [mercado] digital, porém são as que menos são absorvidas no mercado formal. Empreender nem sempre é escolha para quem é preto e pobre no Brasil. Olhando só para as startups, um dado americano mostra que apenas 4% das startups são comandadas por mulheres negras. No Brasil esse dado nem existe. Ainda é um cenário muito desigual.

 

IT Forum: E como aproximar esses dois conceitos distintos de startup?

Silvana: Acho que é fomentando a caminhada das pessoas negras. E como a gente faz isso? A gente investe de várias formas. Com dinheiro, principalmente, mas estimulando a formação dessas mulheres, o protagonismo delas dentro desses espaços. Tem algumas formas de estimular e está totalmente atrelado à questão de estrutura. Não é só sobre ter acesso, é sobre ter oportunidades. De estudo, formação, qualificação profissional, diálogo, investimentos. Tem muita coisa aí nesse mundo. Não é só ter “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. São muitas variantes que fazem com que as pessoas cheguem ou não lá.

 

IT Forum: Aproveitando sua associação ao grupo de Arte e Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo, queria te perguntar sobre o racismo que não está só no mercado de TI, mas também nas próprias tecnologias. Em algoritmos racistas, por exemplo, que quando em câmeras de vigilância identificam primeiro pessoas negras como suspeitas. Por que isso ainda acontece, na sua opinião?

Silvana: Acho que existe uma falta de diversidade em quem produz tecnologia que geralmente divide o mundo tecnológico das questões sociais. E não dá para ser dividido. Quando se faz uma programação, se digita um código, se cria uma plataforma ou aplicativo ou qualquer tecnologia, sua visão de mundo está embutida ali. E quando se fala que tecnologia não é neutra, é disso que estamos falando. Eu sei que é óbvio, mas o óbvio precisa ser dito por que muitas vezes ele é ignorado. Quando a tecnologia que a gente usa é criada na maioria das vezes por homens brancos heterossexuais moradores do hemisfério norte, acaba havendo um aumento da desigualdade. E temos delegado muitas das decisões políticas, sociais e econômicas ao algoritmo, uma máquina. E não é só uma máquina, é quem programa e cria a máquina. Por isso é importante lembrar que qualquer tecnologia, da mais analógica à mais revolucionária, sempre vai ser social, pois é fruto de uma escolha humana. Ela carrega vieses, sempre. Não existe invenção. E a gente vive em um país muito marcada por desigualdade em que até mesmo o racismo é negado, e quando a gente olha para os números vemos quem são os mais vulneráveis ao desemprego, à violência. Os menos assistidos em questões de saúde. E quando a gente importa políticas externas sem considerar o contexto do Brasil, aumenta a desigualdade.

 

IT Forum: A percepção de que o problema existe ao menos tem evoluído? E se sim, onde ela evoluiu mais? Nas empresas ou no setor público?

Silvana: A maior percepção está na sociedade civil organizada. Nos ativistas, nos hackers ativistas. Eu acho que é uma questão que ganhou folego maior de 2020 para cá, quando a nossa vida começou a ser ainda mais mediada por telas e algoritmos. De alguma forma, do ano passado para cá, essa discussão tem ganhado robustez, ainda que eu considere muito pouca. Um dos grandes problemas é a falta de linguagem, porque o debate fica muito em um léxico jurídico ou tecnológico. A gente precisa criar linguagens para falar com pessoas que não necessariamente estão dentro dessas bolhas. É um desafio para mim e todas as pessoa que trabalham com essas questões. E a mídia tem que produzir mais conteúdo sobre esses aspectos relacionados a essa tecnologia. A mídia tem papel fundamental, e temos muito poucos veículos produzindo [conteúdo sobre] assuntos ligados a esse tema. E aí é difícil estourar as bolhas mesmo.

 

IT Forum: Mas e esses dois atores, governos e empresas. Eles têm trabalhado para mudar o atual estado das coisas?

Silvana: A gente tem algumas empresas parceiras hoje [no Olabi]. Em termos de governo tenho visto algumas iniciativas. Por exemplo a comissão que vai acompanhar o processo de transparência nas eleições nos próximos anos [formada pelo Tribunal Superior Eleitoral]. Temos algumas iniciativas olhando para as tecnologias nos processos democráticos. Mas ainda é pouco. As empresas têm se preocupado com isso, muito motivadas por indicadores de ESG em relação à diversidade. Mas é uma coisa que não pode ficar só na mão de empresas e governos. A participação da sociedade civil é fundamental para construir uma política efetiva – não só pública, mas privada também, de regulação de mercado. Sem participação popular a gente está falando de dar isso na mão de pessoas grandes que definem a vida de muita gente. Essas discussões estão sendo feitas com pouca participação.

 

IT Forum: Hoje os maiores parceiros do Olabi estão no governo ou em empresas? E você espera que a participação desses atores em projetos como o Olabi cresça?

Silvana: A minha expectativa é que empresas participem cada vez mais, principalmente fomentando a capacitação técnica, principalmente de pessoas socialmente vulneráveis. Temos parcerias com algumas empresas em diferentes frentes, desde a construção de programas de acesso de jovens negros, a consultoria e a construção de uma cultura de diversidade. A gente acabou de lançar um material, um e-book [Experiências de diversidade & inclusão: um ponto de partida para sua empresa ser mais plural, que pode ser baixado aqui], em que a gente trabalhou durante um ano inteiro entendendo como grandes empresas de tecnologia tem construído diversidade da porta para dentro. Fomos entrevistar empresas e consultorias que ajudam as empresas. Então o nosso trabalho no mercado acontece de algumas formas, mas está embaixo de um guarda-chuva que é: como construímos políticas permanentes de inclusão.

 

IT Forum: Você mencionou que o Olabi também atua como consultoria de diversidade e inclusão. Como se dá esse trabalho?

Silvana: É um trabalho de cultura. Passa por três fases. Uma de diagnóstico, para entender como a empresa está em relação à diversidade. E outra fase é trazer esses dados e a discussão para os gestores. E terceira fase é o letramento para diversidade, mas a gente chama da porta para dentro de “ampliação de repertório”. Muitas vezes quando as pessoas entendem que a diversidade é importante, ainda querem saber “por onde eu começo?”. E esse material [o e-book] tem o objetivo de ser uma ferramenta para quem já entendeu como a diversidade é importante e quer começar a implementar essa mudança de cultura.

 

IT Forum: Pensando no longo prazo, qual o grande objetivo do Olabi? Onde você vê o projeto daqui a cinco, dez ou vinte anos?

Silvana: Cara, um futuro em que as pessoas não sejam excluídas. Esse é o grande objetivo do Olabi a longo prazo. E isso se dá com uma relação com a sociedade mais conectada com todas as novidades que a tecnologia traz.

 

IT Forum: No Mês da Consciência Negra, o que há para comemorar quando falamos do mercado de tecnologia e inovação para pessoas negras?

Silvana: Vou ser muito sincera para você. Otimismo para mim não é estado de espírito, é uma ferramenta, de sobrevivência inclusive. A gente tem o que comemorar. Quando a gente olha para o mercado e vê a discussão sendo feita, é um passo à frente, sem dúvida. Mas temos muito a fazer, porque o problema que queremos resolver é muito grande. E precisamos de aliados, parceiros nessa luta. E a gente tem o que celebrar, mas também é uma celebração de recarga para gente seguir lutando. Não é só em novembro que a gente tem que falar disso, temos que pautar o ano inteiro. Em novembro, que bom que as pessoas começam a olhar com mais ética e honestidade para essa questão. Então temos sim o que celebrar.

Newsletter de tecnologia para você

Os melhores conteúdos do IT Forum na sua caixa de entrada.