Recordar é (sobre)viver: por que a escassez de chips é falta de memória

Para Michel Pecht, da Universidade de Maryland, empresas não aprenderam com a tragédia de anos atrás e continuam operando sem planos alternativos

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6:39 pm - 01 de junho de 2021
escassez de chips

A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como… falha – porque não há nenhuma farsa na atual escassez de chip de silício, apenas falta de planejamento e aprendizado. Quem “corrige” a célebre frase de Karl Marx é o professor de engenharia mecânica da Universidade de Maryland, Michael Pecht. Para o docente, o desespero do mercado frente ao “sumiço” dos chips semicondutores só evidencia o descaso com a história. “Quando aconteceu o desastre de Fukushima, em 2011, tivemos esse mesmo problema, porque grandes companhias não tinham estoque ou contavam com um fornecedor alternativo de chip de silício”, explica Pecht.

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O professor não se refere aqui ao acidente nuclear, mas ao terremoto e tsunami, que matou quase 20 mil pessoas. Na época, além do prejuízo humano irreparável, grandes companhias amargaram a falta de material para retomar suas atividades. Honda, Toyota e outras gigantes do automobilismo foram algumas das mais prejudicadas. Dez anos depois e as fabricantes de carros voltam a acionar o freio de emergência pelo mesmo motivo – escassez de material em decorrência de um evento inesperado. Segundo cálculo do Yahoo!, o prejuízo das montadoras pode chegar a US$ 100 bilhões.

“Acredito que precisamos ponderar alguns pontos aqui”, discorre Pecht, “o primeiro deles é que, por conta da pandemia, alguns trabalhadores das fábricas de chips de silício podem ter deixado de ir ao trabalho e, os que foram, talvez tenham visto sua produtividade ser reduzida pelos novos protocolos de segurança impostos pelas autoridades de saúde locais”.

Ainda que seja uma justificativa verossímil, o próprio professor confessa que o impacto dessa resolução é mínimo e pontual. “O segundo e, na minha opinião, mais importante ponto, tem a ver com a demanda”, Pecht continua, “as empresas apostaram no enfraquecimento do consumo, por conta do lockdown e outras resoluções, mas essa previsão não se concretizou”.

O apetite dos consumidores expôs a vulnerabilidade da cadeia de suprimento, que ainda opera no limite. A situação é tão dramática que empresas do calibre da Ford, de quase US$ 60 bilhões, tiveram que pausar suas operações. Segundo a revista Car and Drive, especializada na cobertura do mercado automobilístico, a companhia americana tirou mais de 324 mil carros da linha de produção como consequência direta da falta de chip de silício.

A toda poderosa Tesla, a empresa de carros mais valiosa do planeta, com valor de mercado acima de US$ 600 bilhões, também tem passado apertos. No balanço fiscal do primeiro trimestre deste ano, a empresa explicou como conseguiu desviar de uma catástrofe absoluta: “fomos capazes de navegar pelos problemas globais de escassez de fornecimento de chips, em partes, porque mudando de forma extremamente rápida para novos microcontroladores, ao mesmo tempo em que desenvolvemos firmware para novos chips feitos por novos fornecedores”, disse a empresa. Agora, a companhia de Elon Musk estuda pagar antecipadamente pela compra dos chips, numa tentativa de pressionar os fornecedores, e não descarta a possibilidade de comprar ou estruturar uma fábrica de semicondutores.

Das montadoras, a única que não está patinando nesta crise é, curiosamente, a Toyota. A companhia mais afetada pela tragédia de Fukushima prova que não tem memória curta. Desde o incidente, manter um estoque gordo e seguro é uma prioridade da montadora – o que lhe garante a troca de marchas nesse mercado empacado.

Mas não só os carros que estão patinando nessa lambança toda. De certa forma, qualquer companhia que produza algum tipo de aparelho inteligente está passando por apuros. E a perspectiva não é nada otimista. Em e-mail ao IT Forum, a TSMC, uma das maiores produtoras de chip de silício do mundo, confirmou que a demanda mundial está alta.

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“Esperamos que em 2023 tenhamos mais capacidade para produzir mais e atender aos clientes”, escreveu a empresa, o que indica que o ano de 2022 seja igualmente desafiador para o mercado. Quem quer mudar essa narrativa é a Apple, que está intercedendo para que a TSMC receba vacinas contra a Covid-19 e as aplique em seus funcionários. A ideia é que, com a equipe imunizada, a companhia consiga manter o ritmo de sua produção em máxima capacidade – mas ambas as empresas não comentaram sobre esse “acordo”, divulgado por veículos americanos especializados.

Para o professor Michael Pecht, porém, a Apple deveria ser a última empresa a se preocupar. “Você tem seus clientes prioritários, que honram contratos de alto volume, e você tem os demais”, diz o docente. “As fabricantes de chip de silício tendem a honrar esses acordos mais parrudos primeiro, então companhias como Apple e Dell provavelmente passarão intactas pela turbulência”. A mesma lógica de priorizar os contratos mais caros explica porque o Brasil deve ser mais prejudicado pela escassez de chips semicondutores.

“É tudo hierarquizado por volume e certamente muitas das empresas brasileiras devem ficar para trás nesse critério”, confirma. E Pecht avisa de antemão que não há “jeitinho” que nos salve da tormenta. “Não há como driblar o sistema a essa altura”, e finaliza, “acho que o futuro consiste em melhor estruturar a área de supply chain, estabelecendo fornecedores alternativos e administrando um estoque maior, para evitar que as dores sofridas lá em Fukushima não continue acontecendo de tempos em tempos, porque certas coisas são inevitáveis, como essa pandemia”.

 

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