Emicida: criatividade é um espaço que deve ser ocupado por todos

Durante plenária de abertura do IT Forum Trancoso, Emicida discute democratização da arte e educação como única saída para o retrocesso

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10:13 pm - 18 de agosto de 2021
Emicida durante abertura do IT Forum Trancoso

Leandro Roque de Oliveira, mais conhecido pelo seu nome artístico Emicida, é um homem de fáceis palavras. Aos 36 anos, recém-completados, o cantor, compositor e também cofundador do Laboratório Fantasma, lida com temas como criatividade, educação, política e desigualdade como quem escreve poemas de cabeça. Para o músico, criatividade não deve ser encarada como um dom, “como uma luz que vem de cima”. Para ele, essa narrativa dada comumente aos artistas acaba sendo excludente. “É uma forma de tentar criar uma atmosfera de que arte e sensibilidade não são para todos”, disse Emicida nesta quarta-feira (18) durante a plenária de abertura do IT Forum Trancoso, evento organizado pela IT Mídia e com programação que se estende até a sexta-feira (20). “E eu acredito extremamente no oposto. As sensibilidades variam. Você pode ser sensível para uma coisa para a qual eu sou insensível. E é por isso que preciso de você”, acrescentou. E da mesma forma que podemos exercitar-nos fisicamente, a criatividade também se renova com a prática e tentar entender sob o olhar do outro.

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Desmistificar o status da arte e tirar o pedestal sob ela também passa por um processo de democratização de seu acesso. Um movimento contracultural muito anterior à Internet e que possibilitou o que ficou conhecido como Do It Yourself ou faça você mesmo. Foi exatamente a disponibilidade de novos meios de produção e novos canais de distribuição que permitiram uma nova geração de artistas ganharem audiências globais. Emicida é um deles. 

“Emicida existe porque a Cybershot existe, porque todo celular passou a ter câmera. Porque os compartilhamentos de arquivos passaram a ser mais populares”, disse ao abordar a horizontalidade da produção que a Internet permite. “E a gente vem de um tempo, sobretudo quem nasceu no meio dos anos 1980, de onde o maior ativo era, de alguma forma, a distância. Todo mundo queria ter o tênis que ninguém tinha, o carro que ninguém podia ter. Algumas coisas dessas continuam na nossa percepção, mas é interessante como a Internet aproximou as coisas de tal forma que todo mundo quer participar do challenge que viralizou no TikTok, porque agora é interessante estar próximo. Que a gente consiga pegar essa ótica de proximidade e transpor ela para o mundo real. Essa cultura de pertencimento que o digital trouxe é muito interessante”, reflete o cantor.

Nem tudo precisa ser prático

Emicida reserva suas críticas a certas particularidades que a tecnologia proporciona. Em um mundo onde nossa presença e valor são condicionados à reputação no digital, reservar-se à privacidade pode soar contraintuitivo a um artista. “A condição do artista é uma parada muito interessante. Muitas vezes sou cobrado por não postar minha vida no Instagram. Não julgo, é uma forma que as pessoas têm de compartilhar sua vida. Mas eu tenho um zelo com minha privacidade porque esse lugar que a privacidade dá pra gente, ser um observador, é essencial para um artista que quer retratar o seu tempo. Se eu passo de sujeito produtor de arte para mero objeto eu perco esse lugar de observação”, ponderou. 

Longe de negá-la, a conveniência, moeda que é usada para dar valor à economia de aplicativos, também é ponderada pelo artista. “Um aplicativo que transfere meus textos para outro aparelho, eu quero isso. Eu gosto. Só que a gente tem que tomar cuidado em pensar que a única coisa que a vida precisa ser é prática. A vida tem de ser muita coisa, prática não é prioridade. O que a vida é pra você? Você vai dizer que a vida tem de ser bela, inspiradora, precisa ser justa, você não vai me dizer que vida tem de ser útil, a vida pode ser sempre mais”, diz. Mas brinca: “Falando assim, eu pareço um homem das cavernas. Mas tecnologia é maravilhoso”.

Educação é a única saída

Criado na periferia da zona norte de São Paulo, no Jardim Cachoeira, Emicida reconhece ser uma exceção à regra. “Eu não gosto de limitar a criatividade da periferia ao esporte e à arte. Porque parece que a gente sempre vai trabalhar para produzir exceções à regra. […] Precisamos produzir ascensão social visível que parta de outros lugares que não seja a arte, o esporte. Pois o Emicida músico é daora, mas precisamos do Emicida advogado, o Emicida médico, o Emicida engenheiro. Enquanto a gente não produzir pessoas geniais com oportunidades em escala industrial neste País, a gente vai ter um teto muito baixo para nossos sonhos”, ressalta.

Como artista, ou melhor, como cidadão, Emicida faz uso da sensibilidade que ele diz ser possível exercitar tal qual um exercício na academia. Estar aberto a tudo é um meio. “Nossa sociedade é muito narcisista. E o certo, o bonito, inteligente, o moralmente correto é tudo que reflete a mim mesmo. Acho que o caminho para uma sociedade melhor é o oposto disso. A gente precisa estar aberto a compreender tudo que não somos nós. […] Eu acredito muito no potencial criativo no Brasil, potencial tecnológico, de engenharia, humano, ambiental, não só para destravar a sociedade brasileira, mas o mundo precisa querer e se conscientizar, mas para isso precisa estar com o olhar limpo”, indica ao falar sobre um olhar que também precisa questionar o que se convencionou a ser o estabelecido. “Olhar as fotos dos formandos de direito e não ter ninguém de pele escura e achar normal”, exemplifica Emicida ao parafrasear uma fala que ouviu creditada à escritora, cantora e atriz brasileira Elisa Lucinda: “o brasileiro gosta de pensar que o Apartheid foi na África do sul, foi nos Estados Unidos. O que define Apartheid é territorialidade. Se você vai num lugar e estranha que existe uma pessoa preta sendo servida, existe territorialidade. A gente naturalizou as desigualdades que vemos todo dia e precisamos lavar os nossos olhos. Se a gente não fizer isso, vamos ficar correndo no mesmo lugar e aí não adianta ficar falando de criatividade”.

 

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