Casos de família: o ‘pai da internet’ reflete sobre sua criação

Leonard Kleinrock projeta o que podemos esperar do futuro para a tecnologia que foi mãe de outras tantas inovações

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9:00 am - 06 de setembro de 2021

Se pai é quem cria, então não há dúvidas: Leonard Kleinrock é mesmo o pai da internet. O trabalho do engenheiro e cientista da computação da UCLA foi fundamental para o desenvolvimento das Arpanet, a precursora da rede mundial de computadores que conecta o planeta. O teste de paternidade, contudo, não tem a ver com a concepção, mas com a criação.
Ainda hoje, aos 87 anos, o americano dedica boa parte do seu tempo ao “primogênito”, o que lhe gera pequenos atritos com a esposa, que reclama do excesso de atenção destinada ao rebento.

Kleinrock se recusa a parar. À frente do recém-inaugurado UCLA Connection Lab, o engenheiro tem como missão usar sua experiência única para guiar alunos de graduação, visitantes, professores, pesquisadores e doutorandos a pensar (e moldar) o futuro. “Continuo fazendo a pesquisa fundamental para expandir a capacidade da internet e para responder algumas das questões não resolvidas; para entender para onde está indo e por que se comporta da maneira que faz”, diz o professor.

Como todo bom pai, Kleinrock sabe que criou a internet para o mundo, e não tenta lhe censurar nos pontos de discordância, embora opte por não se envolver mais. “Eu parei de dar consultoria para corporações, porque acho que elas passaram a ser muito motivadas pelo lucro”, diz.

Antes disso, o professor esteve ligado à fundação da Tesla, onde promoveu as primeiras ideias, pesquisas, investigações e desenvolvimento. Também esteve envolvido na criação da rede elétrica conhecida como McCone, ativa no estado de Montana.
Seu currículo extenso vai agora se desligar das grandes empresas, mas deve se aproximar mais e mais dos pensadores que estão dispostos a encarar as questões urgentes acerca da internet, que tem persistido no que Kleinrock chama de “fase irritante de adolescência”. Defensor de uma regulamentação comunitária e entusiasta de aplicações, ele não se refuta às auto-críticas e nem ao papel de pai. “Posso ser mais velho, mas não menos enérgico”.

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IT Forum – Quando estamos tentando pensar em um futuro melhor, é fundamental que olhemos para o passado e resgatar o que aprendemos com as coisas que já fizemos – por isso estudamos história, né? Já que você é um dos pais da internet, eu queria saber quais as lições que você aprendeu nessa jornada que podem ser úteis na construção de um futuro mais seguro e ético.

Leonard Kleinrock – Essa é uma grande pergunta, mas acho que mais do que analisar os fatos em si, precisamos ponderar o contexto e avaliar as inspirações, as dedicações e o ambiente em que as verdadeiras inovações aconteceram. Por exemplo, na minha opinião o período entre 1950 e 1960 foram os anos de ouro, porque as coisas aconteciam muito rápido e os sonhos e riscos eram maiores. Estávamos imersos em uma cultura que nos permitia apostar alto. Os investimentos que recebíamos permitiam falhas, contanto que aprendêssemos com elas. Não havia nenhum tipo de controle ou censura. Não é à toa que foi justamente nessa época que coisas maravilhosas emergiram, como a tecnologia do chip, a inteligência artificial e tantas outras. Para responder a sua pergunta, acho que o que aprendemos é que o sucesso é o resultado dessa combinação de pessoas, ambiente, cultura e oportunidade.

IT Forum – Acha que isso pode ser replicado?

L.K. – Você pode ajudar, certamente, mas não se pode forçar nenhuma dessas coisas. Agora, acho que isso é só uma parte da lição que eu entendi ao longo dos anos. A outra eu diria é que, muitas vezes, quando se está debruçado sobre um trabalho, você não tem ideia da magnitude e da proporção que aquilo pode tomar. Por isso eu digo hoje que, não importa o que você faça, faça com empenho e energia, documente, seja cauteloso e não se apresse a descartar informações, materiais e ideias, porque nunca se sabe quando essas coisas podem ser úteis. Por fim, eu diria curta cada momento, seja sozinho ou ao lado dos seus colegas, porque o prazer do trabalho é a peça-chave da mágica toda.

IT Forum – Professor, depois que criamos algo e colocamos no mundo, não temos mais autonomia sobre aquilo, que pode ser usado tanto para o bem quanto para o mal, né?

L.K. – Com certeza! O que aconteceu com a internet que eu ajudei a criar? Ela fez uma curva perigosa uns 25 anos atrás. Nós éramos um bando de nerds, focados, curtindo o nosso trabalho e vivendo da sensação de recompensa a cada desafio de engenharia que superávamos. Todas as nossas pesquisas, na época, eram usadas para coisas boas, como pesquisas e análises. Então, em 1990 tudo começou a desmoronar, quando o tal do mundo “ponto com” passou a se interessar pela internet. Al Gore ajudou a criar uma network de altíssima velocidade, de um gigante por minuto, e nada nunca mais foi o mesmo. Nasceu a web. Aí tínhamos o interesse público, as pessoas dispostas a oferecer acesso e uma interface gráfica de usuário simples que permitia a qualquer um interagir com o que havia na tela. Foi então que as corporações mundiais vieram à tona dizendo que aquilo não era uma ferramenta de engenharia, mas uma máquina de compras, uma fábrica de fofocas e um canal de entretenimento. Então, em vez de desenvolver as maravilhas que poderiam mudar o mundo, eles estavam usando a internet para vender detergente. A web virou uma máquina de fazer dinheiro mesmo e, quando isso aconteceu, tudo mudou dramaticamente e o objetivo não era mais desenvolver coisas grandiosas, mas gerar lucro. Veja, ainda acho que é uma ferramenta que gera valor, mas não foi usada para coisas grandiosas. Tivemos pequenos avanços, talvez uma melhora na internet, mas não foi o que esperávamos.

IT Forum – E como você se sente com isso?

L.K. – Honestamente, me entristece saber que isso aconteceu. A internet que ajudei a criar é muito diferente hoje, mas para ser sincero e justo, nós deveríamos ter sido capazes de prever isso. Assim que deixamos o gênio escapar da lâmpada, com toda a capacidade que antecipamos, como acesso imediato, barato e rápido, milhões de pessoas em todo o mundo com pouco esforço ou dinheiro alcançando milhões de outras pessoas, devíamos ter sido capazes de prever que isso não seria apenas uma conquista da engenharia. Aquilo não seria apenas uma maneira de indivíduos e comunidades interagirem, porque também seria usado para publicidade e outros fins comerciais. Nós não vimos isso. Na verdade, posso fazer um comentário geral de que, enquanto engenheiros e desenvolvedores, nós vimos a tecnologia e como ela deveria se comportar e para onde deveria ir, mas não vimos as aplicações e os serviços. Aliás, falhamos miseravelmente na previsão dessas coisas. Ninguém imaginava a chegada do email, do YouTube, das redes sociais, dos buscadores… Quando essas coisas nasceram, elas cresceram com tanta força que rapidamente dominaram a internet de diferentes maneiras. E o futuro ainda reserva muitas surpresas para a gente nesse campo e o problema é que quando desenvolvemos a internet e víamos toda a tecnologia, a gente não colocou mecanismos de controle para proteger e guiar as aplicações e serviços que viriam com ela.

IT Forum – Bom, mas migrando para um campo mais positivo, quais são as conquistas possíveis por conta da internet que você se orgulha?

L.K. – Ah, são muitas tecnologias de ponta. Por exemplo, acho que a computação quântica é algo que vai ter um impacto dramático em segurança, capacidade, velocidade, poder… tudo isso para o bem e para o mal. Vai ser um grande passo e já estamos trilhando nesta direção. Dizem que veremos os frutos disso em 40 anos, mas cá estamos às margens da computação quântica.

IT Forum – Alguma outra, digamos, mais acessível?

L.K. – Acho a tecnologia do blockchain impressionante. A ideia de uma cadeia de transações e contratos ser guardada e imutável, incorruptível e compartilhada é realmente incrível. Atualmente essa tecnologia é utilizada para as criptomoedas, que têm uma reputação dividida. As pessoas estão começando a explorar mais essa ferramenta e minha previsão é de que ainda há mais surpresas a caminho.

IT Forum – Dito tudo isso, acha que é hora de começarmos a discutir de maneira séria a regulamentação da internet?

L.K. – Quando as coisas acontecem e se desenvolvem de maneira orgânica, ela é muito poderosa. A internet é assim justamente por isso, porque nasceu orgânica e permitiu uma abordagem direta, numa construção vertical. Agora, porém, temos visto um lado bastante obscuro da internet. Por um tempo achamos que era uma fase, uma coisa meio como a adolescência de rebeldia, agindo de maneira desobediente e irritante. Todo mundo achou que com a maturidade esse lado sombrio dormiria, mas não aconteceu. Aliás, piorou. Mas estados e nações estão agindo mal, cercando a internet e atacando a rede de outros países. Estamos falando de crimes organizados federais, sabe? A América corporativa está nos explorando. Quando foi a última vez que o Google lhe perguntou se você aceita as políticas de privacidade da companhia? Eles não perguntam!

IT Forum – Qual deveria ser o papel do governo nessa história, afinal?

L.K. – Eu acho que o papel do governo deve ser o de estruturar uma espécie de fórum onde todos os interessados possam entrar e discutir qualquer projeto de regulamentação, qualquer projeto de proteção à privacidade e tudo mais que impacte usuários, empresas e governo. Acredito ainda que a população usuária tem sido negligente, não temos nos manifestado e reclamado o suficiente. Com esse fórum todos teriam voz e não estou falando de apenas um grupo, mas de todos os envolvidos: governo, corporações, engenheiros, cientistas e usuários. A internet é de interesse e responsabilidade de todos.

IT Forum – Mas o senhor não acha que dessa maneira a internet vai ficar ainda mais complexa? Quero dizer, muita gente já se sente deixada para trás por não dominar linguagem de programação e recursos tecnológicos…

L.K. – Sim, você tem razão. Quando a internet ainda engatinhava, uma das minhas previsões era de que a internet se tornaria invisível, o que significa fácil de usar. Mas esse aparelho aqui (um iphone) é muito complexo: o teclado é muito pequeno, a tela é pequena, há muitos protocolos, regras e questionamentos. Nós não deveríamos ter de lidar com nada isso. Quando você vai escrever um site na internet, você, muitas vezes, começa com “www” ou “http://” e depois uma sequência enorme, e para quê? Você poderia apenas dizer o que queria e pronto. A interface está melhorando, mas o sistema é complexo, o que acentua ainda mais a desigualdade no mundo. A gente tem essa mania de falar de desigualdade e pensar apenas no aspecto econômico e educacional disso, mas é um fenômeno que também afeta a tecnologia. Precisamos de engenheiros especializados para entender muitas coisas e acredito que uma pessoa não deveria saber Java para fazer parte desse mundo. O usuário deveria apenas conversar com o sistema, que é algo que está começando a acontecer com a inteligência artificial, o que me preocupa um pouco…

IT Forum – Por que isso te preocupa?

L.K. – Há algumas coisas relacionadas à inteligência artificial que me deixam alerta e uma delas é a rede neural artificial. Essa rede neural artificial faz coisas incríveis, como reconhecimento facial, reconhecimento de certas sequências e sinais. E a partir disso, ela consegue extrair e decodificar uma certa inteligência que se parece aleatória. Um dos problemas disso é que o sistema não deixa evidente o que e como está fazendo de forma a tornar tudo plausível. Em defesa dessa tecnologia, ela ainda está em estágios iniciais e há muito o que aprender e aperfeiçoar.

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IT Forum – Nem todo mundo tem a sorte e o privilégio de ser seu aluno, mas se pudesse dar um conselho a quem quer entrar para a internet por vias profissionais, qual seria?

L.K. – A primeira coisa que eu diria é: tente olhar para o horizonte e prever a onda que a tecnologia pode levar. Então tente imaginar o mundo com essa tecnologia e com todos os problemas que ela poderia causar, e aí resolva essas questões. O que percebo na minha sala de aula é que os alunos têm uma pergunta e trabalham apenas para encontrar a resposta, mas não param para refletir o que aquela resposta está lhes dizendo. Além disso, muitos deles se apoiam em computadores para encontrar as respostas e rodam simulações em vez de encarar os cálculos. Veja, não há nada de errado nisso, contanto que, ao confrontar as simulações de um computador você se questione o porquê e como a máquina chegou àquele resultado.

IT Forum – Pegando carona nessa sua última fala, o que essas novas tecnologias estão lhe dizendo agora? Nesta conversa você comentou de computação quântica, de inteligência artificial e diferentes aplicações… mas o que essas áreas lhe dizem agora?

L.K. – Que há motivos para preocupação. Eu estou bastante preocupado com o caminho que estamos trilhando. Temo que aconteça o que chamo de internet balcanizada ou fragmentada, onde os estados-nações colocam essas fronteiras, essas paredes em torno de sua própria internet para evitar que outras nações acessem suas redes e vice-versa. Uma vez que você começa a fragmentar a internet dessa maneira, você perde o poder dela. A internet deveria garantir acesso imediato a todas as informações, troca de informações, troca de ideias, entre pessoas pelo mundo.

IT Forum – Com tantas preocupações, diria que tem saudade do mundo offline?

L.K. – Não, eu amo esse mundo e uso muito a internet, mas não sou viciado. Passo bastante tempo ao ar livre, pratico exercícios – faço artes marciais. Adoro viajar, adoro ler, adoro artes. Adoro visitar museus. Sou um nerd confesso, mas acho fundamental encontrar um equilíbrio, porque é preciso preservar o que nos faz humano.

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