Para professor Guy Standing, renda básica universal é um direito

Em entrevista, co-presidente da Basic Income Earth Network defende que renda universal é a resposta para desigualdade social e dignidade humana

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9:01 am - 09 de julho de 2021
Guy Standing

Quem quer dinheiro? Doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, o professor Guy Standing é uma espécie Silvio Santos sem plateia, mas com muitos diplomas. Ex-conselheiro econômico do Primeiro Ministro da Malásia, Standing dono de um extenso currículo, onde um dos cargos que mais se destaca é o de co-presidente da Basic Income Earth Network, uma ONG internacional que promove a renda básica universal como direito.

Esse discurso de “dar dinheiro” por aí foi por muito tempo considerado utópico, mas agora começa a fazer mais sentido e ganhar corpo à medida que testes de seu projeto são implementados mundo afora.

De acordo com o professor, mais de 50 países experimentam uma metodologia de renda básica, e o resultado dessas amostragem foram consolidados em livros como o “Battling Eight Giants: Basic Income Now”, publicado em 2020.

Na obra, Standing mostra o absurdo que é saber que neste mundo moderno, cheio de tecnologia e papos desconstruídos, a desigualdade seja a maior dos últimos 100 anos. Colocando isso em números, o docente pontua que, em um dos países mais ricos do mundo, 60% das famílias vivendo em condição de pobreza têm pessoas empregadas. Ou seja, não é o “trabalho duro” que blinda alguém da vulnerabilidade social. Não em uma sociedade injusta como a nossa.

A resposta para todos e esses males, de acordo com Standing, seria a renda básica universal – e é justamente sobre isso que perguntamos ao autor, maior autoridade mundial no assunto.

Acompanhe a seguir a entrevista completa, feita com exclusividade pelo IT Forum.

IT Forum – Professor, a gente lê muitas notícias aqui nos Estados Unidos sobre pequenos empresários tendo dificuldade para encontrar e contratar mão de obra. Há quem credite esse fenômeno ao auxílio emergencial oferecido pelo governo.

Guy Standing – Primeiro é preciso deixar claro que isso não está acontecendo só nos Estados Unidos, é um fenômeno global. Isso acontece na Inglaterra, na Itália e em toda a Europa, então não é uma particularidade americana. Vivemos uma fase de transição em que é muito difícil apontar conclusões certeiras e explicar o que se passa. O que posso dizer é que, depois de uma recessão, ou de um grande choque econômico, leva um tempo para que o mercado de trabalho encontre de novo seu ponto de equilíbrio. No momento, o que temos certeza é que o departamento de contratação de grandes empresas está muito mais vagoroso do que no passado.

IT Forum – E a que se deve essa letargia?

Eles estão mais lentos porque os empregadores estão usando sistemas de algoritmos para fomentar algumas contratações, então o processo pede seguidas rodadas de investigação, gradualmente reduzindo o número de candidatos para uma vaga. Isso leva meses!

IT Forum – Mas muitas vagas abertas são para posições que não requerem muito conhecimento técnico, como oportunidades para garçons e atendentes.

Essa pandemia fez com que os trabalhos no ramo de hotelaria e serviço, que exigem contato físico, se tornasse arriscado para algumas pessoas. Há muita relutância nessas áreas, o que deve impulsionar aquilo que nós economistas chamamos de “salário de reserva”, que é o salário pelo qual as pessoas aceitariam um emprego. Agora, vivemos uma situação interessante aqui na Europa e nos Estados Unidos, porque esses pacotes de estímulos estão sendo testados. Nele, o governo paga um montante às pessoas que não estejam ganhando o suficiente – e isso cria um problema enorme, que eu chamo de “armadilha da pobreza”.

IT Forum – Poderia nos explicar essa armadilha?

A armadilha da pobreza acontece quando você recebe um benefício apenas se está desempregado ou se o seu salário for realmente muito baixo. Se você aceita uma oportunidade mal paga, como essas posições que discutimos, você vai ter uma parte relevante subtraída para impostos. Em outras palavras, porque você aceitou um trabalho, você agora ganha quase a mesma coisa que recebia de ajuda do governo. Porém, se você levar em consideração alguns gastos extraordinários, como creche para as crianças, deslocamento e alimentação, você, no final das contas, pode ganhar menos do que ganharia estando desempregado.

IT Forum – Daí o discurso contra o auxílio-desemprego…

Mas o problema não é o auxílio, entende? O problema são os salários baixos. Nos Estados Unidos e em muitos outros países, o poder de compra da população caiu ou está estagnado há 30 anos. Essa realidade é muito presente no Brasil também, onde o mercado de trabalho está se precarizando. A coisa fica ainda pior com essa onda de trabalhos de curta duração. Obviamente as oportunidades não são anunciadas assim, mas a realidade é outra, e ninguém quer arriscar aceitar uma oportunidade de curto prazo, que paga pouquíssimo acima dos benefícios governamentais, para ficar novamente desempregado meses depois. Ou seja, nós embutimos uma insegurança no mercado de trabalho, que não é nada atrativo pra muita gente. Logo ele será pouco atrativo pra maioria, porque as vagas estão cada vez menos atraentes, mais voláteis e menos lucrativas.

IT Forum – Então, você acha que é uma falácia essa história de que a criação de uma renda básica universal desestimularia o trabalho?

Com certeza, e tenho advogado a favor da renda básica universal em meus livros e estudos. Estamos testando esse formato em algumas regiões do mundo, e posso lhe dizer que ela estimula o trabalho. Estimula a energia, a confiança e a propensão a aceitar correr riscos.

IT Forum – Qual a diferença entre renda básica e esses auxílios em vigor?

A diferença é que a renda básica você recebe de qualquer maneira, quer você esteja empregado ou não. Renda básica é um direito econômico, um direito de cidadania. E isso não é um desestímulo para aceitar um trabalho de baixa remuneração, porque você não perde essa entrada de capital se ocupar essa ou aquela vaga. Com as medidas atuais, se você aceitar um emprego, você perde os benefícios – e isso sim é um desincentivo. Com um sistema de renda básica, você não perde benefícios ao conseguir um emprego e, portanto, é um tanto enganoso ir contra a renda básica usando a situação atual como régua. Dito isso, acho muito desrespeitoso que alguns representantes defendam suspender o auxílio emergencial ou o seguro-desemprego sob a afirmação de que desincentiva as pessoas de aceitarem empregos. Todo mundo quer ganhar mais dinheiro, quer ver seu padrão de vida melhorar, quer poder dar mais aos seus filhos e familiares. Por isso digo que a renda básica não mudaria isso, enquanto no sistema atual nós penalizamos aqueles que conseguem trabalhos de baixa renda.

IT Forum – O que o governo poderia fazer, a curto prazo, resolver essa questão?

Olha, no Brasil eu sei que o Bolsa Família fez uma grande diferença na redução da pobreza extrema, diminuindo a desigualdade. Eu tive o privilégio de discutir longamente esse assunto com o então presidente Lula, em 2010. Acho, então, que deveríamos ter algo assim, uma renda básica, estruturada pra todo mundo. Estou feliz de ver que 45 cidades americanas estão neste exato momento testando alguma forma de renda básica. Já é hora da gente entender que é enojante um país rico como os EUA ter uma taxa de pobreza tão acentuada, com uma desigualdade crescente e ainda mais acentuada pela pandemia. Precisamos de medidas para garantir que mais pessoas tenham plena condições de levar uma vida digna, que lhes dê segurança e liberdade para que façam suas escolhas morais.

IT Forum – Você diz que algumas cidades americanas estão testando um modelo de renda básica, mas isso já foi feito em outras regiões – poderia compartilhar o que esses estudos mostraram?

Nos programas pilotos, como mostro no meu livro, ficou claro que aqueles que receberam a renda básica não apenas se mostraram inclinados para trabalhar mais, como também desempenhavam suas funções mais bem nutridos. Seus filhos também demonstraram melhor saúde e comportamento, e as mulheres também se saíram melhores nos índices, sobretudo se a renda básica é paga individualmente a cada adulto, mas paga à mulher por cada criança.

IT Forum – Outro argumento que pesa contra a renda básica universal é que, com esse projeto, muita gente se recusaria a fazer serviços considerados “inferiores”, mas que são fundamentais para a manutenção da sociedade, como limpeza e outros trabalhos braçais.

Acho que o que vai acontecer é que, se você tiver uma renda básica, então as pessoas que estão ofertando empregos ruins terão que aumentar o salário proposto, o que seria bom, ou então terão que automatizar essas vagas – o que também seria bom a longo prazo. É errado querer multiplicar esses empregos terríveis, até porque isso seria uma resposta ruim para uma pergunta péssima. E eu acho que, se as pessoas têm segurança básica e os salários aumentam, então as pessoas podem decidir se querem aumentar sua renda e como estão dispostas a fazer isso. Se os trabalhos não forem atraentes e puderem ser automatizados, então vamos automatizar a limpeza do banheiro ou varrer o chão. Quero dizer, muitos desses empregos são trabalhos de merda e seria ótimo se livrar deles. As pessoas poderiam, então, dedicar seu tempo a um trabalho mais interessante, desenvolvendo suas capacidades, desenvolvendo seu senso de pertencimento à sociedade e seu senso de dignidade. E não acho que devemos fazer do trabalho um fetiche. Sim, todos nós queremos trabalhar ou a maioria de nós quer trabalhar, mas não necessariamente em empregos chatos, mal pagos e indignos, e eu acho que uma renda básica seria uma política mais emancipatória que encorajaria uma mudança na forma como olhamos trabalhos.

IT Forum – Mas você acha a desigualdade é, de alguma forma, parte da natureza humana? Porque vemos essa briga constante para ser e parecer melhor que o outro, algo que ficou ainda mais evidente com as redes sociais…

Acho que os privilegiados sempre quiseram defender seus privilégios. Gosto de citar Warren Buffett, que disse abertamente, em diversas oportunidades, que sua vasta riqueza e renda se devem principalmente às instituições sociais e à sociedade, não à sua inteligência e intelecto superior ou qualquer coisa assim. Outro economista americano estimou que 80% de nossa renda vem mais pelas estruturas e pela riqueza herdada do que pelo nosso trabalho, de fato. Então acho que precisamos de humildade para digerir isso. É claro que os ricos gostariam de defender sua riqueza, mas isso não significa que o resto de nós deva ser enganado a pensar que eles são muito inteligentes e que merecem essa vasta riqueza. Sabe, acho que essa pandemia vai levar muita gente a exigir um mundo mais justo, porque a desigualdade hoje é muito maior do que há 20 ou 30 ou 40 anos – e a economia não está muito melhor. É, na verdade, pior do que naquela época. A maior parte dessa grande desigualdade não vem da produção, vem da posse de ativos. No meu livro “The Corruption of Capitalism” eu documento que a maior parte da renda que vai para os ricos porque eles possuem propriedade, não porque trabalharam, entende? Eles possuem propriedade financeira, física ou intelectual. E não acho que a moralidade desse sistema resista a uma reflexão rápida.

IT Forum – Professor, você acha que o mercado de tecnologia é o ápice dessa desigualdade? Porque vez ou outra vemos vagas pagas de maneira desproporcional com outras posições dentro de uma mesma empresa..

Pois é, o dinheiro está indo todo para os setores de tecnologia, mas é por conta do sistema de direitos de propriedade intelectual que lhes dá um controle monopolístico para que possam obter mais e mais renda, mais e mais riqueza. Os bilionários, os plutocratas nos Estados Unidos, no ano passado, ganharam uma quantia incrível, não porque trabalharam mais, mas, de novo, porque possuem propriedade intelectual, patentes e direitos autorais e coisas assim. Isso lhes dá um monopólio, que nada tem a ver com inteligência e trabalho duro. Precisamos desmontar o que chamo de “capitalismo rentista”, e acho que esse é o nosso maior desafio atual.

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