‘O maior desafio da inteligência artificial é aprender a esquecer’

Em entrevista ao IT Forum, neurocientista Rodrigo Quiroga fala sobre os avanços da inteligência artificial, suas limitações e implicações éticas

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7:40 pm - 30 de abril de 2021
Rodrigo Quiroga. Foto: Joan Cortadellas

O médico e o “monstro” habitam o mesmo corpo de Rodrigo Quiroga, argentino graduado em física, PhD em matemática aplicada e diretor do Centro de Neurociência da Universidade de Leicester, na Inglaterra.

Antes de chegar à terra da Rainha, o hermano levou seus estudos à Alemanha, Califórnia e Holanda, onde acumulou experiências nos mais diversos campos da ciência – o suficiente para, em 2014, ser eleito pela organização RISE como um dos 10 maiores líderes do campo da Ciência e Engenharia no Reino Unido.

Com mais de 130 estudos publicados mundo afora, Quiroga é uma sumidade quando o assunto é percepção visual e memória. É mérito dele, por exemplo, a descoberta do chamado “neurônio Jennifer Aniston”, que é um neurônio que protagoniza o processo de formação de memória. O curioso nome veio porque, em laboratório, o argentino descobriu que esse neurônio em particular sempre reagia à imagem da atriz americana – um fait diver que lhe abriu caminho na imprensa mundo afora.

Jornais como The New York Times, The Washington Post, Daily Mail, The Independent e muitos outros abordaram as análises e descobertas de Quiroga que, embalado pela “fama”, publicou três livros, sendo o seu último o mais honesto e arriscado de sua carreira.

NeuroScience Fiction (sem título em português) chegou às livrarias em 2020, e é um compilado de ideias absurdas, retratadas em filmes antigos de ficção científica, que hoje são realidade.

Em conversa exclusiva ao IT Forum, Quiroga assume que o doutor que há em si está perdendo espaço para o “monstro-escritor”. “Se você me perguntar o que quero fazer agora, eu diria que quero escrever o próximo Black Mirror argentino”, afirma.

Enquanto busca os contatos necessários para tirar sua ideia do papel, o ehttps://itforum.com.br/wp-content/uploads/2018/07/shutterstock_528397474.webpso conta sua visão da neurociência, do mundo e exalta o esquecimento como uma ferramenta fundamental para a humanidade.

IT Forum – No seu último livro você mostra que coisas que um dia foram ficção hoje são realidade. Pensando mais na neurociência, que é sua área de especialização, você diria que com a tecnologia e conhecimento que temos, já sabemos tudo sobre a mente humana?

Rodrigo Quiroga – Não estamos nem perto disso. Ainda há tanta coisa que não compreendemos. Ao mesmo tempo que falo isso, acho importante lembrar que quase tudo o que sabemos hoje são descobertas feitas nos últimos 20 ou 30 anos. O progresso é exponencial; avançamos muito. Aprendemos muito nas últimas duas décadas, mas ainda há muito por investigar.

IT Forum – Tendo em vista essa escalada do descobrimento e das ficções que se transformaram em realidade, o que você diria que é o mais surpreendente?

RQ – São tantos casos que eu senti necessidade de escrever um livro sobre o assunto. Há muitas coisas que eu via como ficção científica, que hoje não são mais fictícias, são reais. Uma coisa que é muito surpreendente é o grande avanço da inteligência artificial nos últimos sete anos. O campo cresceu muito. E as coisas que a inteligência artificial está conseguindo hoje em dia eram impensáveis 10 anos atrás. E é muito interessante porque é difícil prever o que acontecerá no futuro da inteligência artificial, porque o campo está avançando muito rápido. Se você me perguntar onde estará a inteligência artificial em 10 anos, eu diria que ninguém pode responder a essa pergunta, porque está se tornando realmente imprevisível. Agora, se você está pensando em termos de filmes e narrativas de ficção científica que jogam com essa ideia de inteligência artificial ultrapassando a capacidade humana e assim por diante, então sim, existem muitas perguntas interessantes que podemos começar a nos fazer, porque isso está se tornando uma realidade.

IT Forum – Especialmente porque o que nos diferencia dos demais animais é nosso raciocínio crítico…

RQ – Tenho que discordar disso, porque descobrimos nos últimos anos que não é isso que nos diferencia dos animais, porque eles também pensam. O que você está dizendo é mais filosófico. Talvez tenha sido Sócrates ou um dos gregos antigos que disse que o homem é um animal com razão, mas a gente sabe que isso não se aplica mais. Animais também têm razão, claro que não uma refinada como a nossa, mas ainda assim, está lá. Então a pergunta que se forma é ainda mais fascinante: o que nos diferencia dos animais? Porque se os macacos raciocinam, o que nos distingue? E a inteligência artificial? Já que a inteligência artificial está chegando tão longe, eu me pergunto, qual é a diferença entre a inteligência humana e a inteligência artificial? Ainda somos mais inteligentes do que as máquinas? E se sim, por quê? O que ainda não conseguimos replicar em computadores?

IT Forum – Há quem diga que o que nos difere são os sentimentos, mas uma corrente filosófica sugere que emoções são também uma atividade cerebral e, portanto, podem ser replicadas. Sendo assim, com o avanço da inteligência artificial, as máquinas podem um dia sentir, certo?

RQ – Sim, mas relacionado a isso, um dos maiores desafios é alcançar a consciência. Ter uma máquina que possa se tornar autoconsciente, uma máquina que saiba de sua própria existência. Se, de repente, criarmos um cérebro de silício, um chip que é tão complexo e tão parecido com o cérebro humano ou animal, esse chip tem consciência de sua própria existência e a máquina se torna autoconsciente. Até alguns anos atrás, isso era ficção científica e, mesmo que isso ainda não tenha sido alcançado, acho que não é uma realidade distante.

IT Forum – Você acha que isso também pode levar a cenários perigosos de poder? Porque, se você está falando de tecnologia, nem todo mundo entende de programação, softwares e etc. Sendo assim, sempre contamos com alguém ou com uma empresa para me fornecer algum tipo de serviço de tecnologia. Você acha que essa inteligência artificial super capaz, nas mãos de uma empresa, pode ser algo com que devemos nos preocupar?

RQ – Vamos lembrar que, apesar de todas as conquistas, as máquinas não conseguem pensar, não conseguem fazer inferências, analogias e não conseguem desenvolver o bom senso, certo? Então, todas essas coisas que fazemos todos os dias, muito naturalmente, são impossíveis de programar em uma máquina. Ninguém tem ideia de como fazer isso. Em termos técnicos, isso é chamado de inteligência geral. Inteligência geral é a habilidade de transferir conhecimento de uma situação para outra. E usamos isso todos os dias, porque todos os dias enfrentamos novos problemas, e sabemos resolver os problemas, mesmo que sejam novos, porque sabemos o que fazer. Temos algum bom senso. Temos alguma intuição. É muito difícil programar essa intuição, esse bom senso em uma máquina. Ainda não sabemos como fazer. E então o cenário catastrófico dos filmes ainda está muito longe para pensar nisso. Mas, tendo dito isso, não posso prever o que acontecerá no futuro. Quer dizer, talvez daqui uma década isso seja mais uma realidade. E então você tem a questão dos monopólios. Você pode ter cenários muito estranhos, como pessoas controlando tudo ao nosso redor. Como uma empresa controlando meus e-mails, por exemplo. Acabei de ler o livro em que a narrativa especula sobre uma inteligência artificial que está alterando e-mails, com base no que você gostaria de ouvir de mim. A inteligência artificial irá alterar o conteúdo do meu e-mail, para torná-lo mais agradável para você, e então a inteligência artificial assumirá o controle das minhas trocas de e-mail. E sim, isso seria uma coisa muito séria, né?

IT Forum – Com certeza! E por que acha que continuamos investindo tempo e energia nesse assunto? Por que a inteligência artificial nos fascina tanto?

RQ – Existem aplicações tecnológicas que são muito atraentes. Por exemplo, 30 anos atrás, ou não sei quanto tempo atrás, você teria alguém nos correios, apenas lendo todos os endereços e tentando separá-los, e às vezes, a caligrafia ficava muito difícil. Agora, tudo isso é feito por inteligência artificial. A inteligência artificial pode ler uma caligrafia melhor do que eu e você. Então, você não precisa ter alguém com óculos grandes tentando adivinhar para onde essa carta deve ser enviada. Você tem um computador fazendo isso. E existem muitos aplicativos assim. Por exemplo, eu viajei muito para a China, e às vezes você tem pessoas que não falam inglês, mas isso não é mais um problema porque o celular traduz tudo simultaneamente. Isso facilita a comunicação e permite muitas coisas. É muito útil de alguma forma.

IT Forum – E, como neurocientista, eu gostaria de lhe perguntar: as máquinas estão definitivamente evoluindo, mas nosso cérebro está evoluindo também?

RQ – Sim, e eu posso lhe dar exemplos. Todo mundo que dirige sabe que, anos atrás, para ir de um lugar desconhecido a outro, você pegava um mapa, traçava um roteiro e memorizava ruas e rodovias. Assim você exercitava a sua habilidade para navegação, pensando que deve virar aqui, depois seguir sentido oeste e por aí vai. Nós não fazemos mais isso. Basta inserir o endereço em seu navegador via satélite e ele o conduzirá. Ele dirá exatamente para onde virar ou como chegar ao local. Então você pode imaginar que, com o uso dessa ferramenta, a nossa capacidade de navegar nesses cenários, de alguma forma, se deteriorou, porque não estamos mais usando. Não estamos mais praticando isso. E aí você pode imaginar que a área que está envolvida nisso não é mais dedicada a essa função. Portanto, os neurônios podem estar fazendo outra coisa. E como eu digo isso com a navegação por satélite, há muitas coisas com telefones celulares, ou com coisas novas que estamos usando hoje em dia, que não usávamos há dez anos. E acho que isso faz o cérebro evoluir. Quer dizer, desenvolver algumas novas habilidades e talvez esquecer outras.

IT Forum – Qual é o nosso próximo desafio, então?

RQ – Pra mim, as grandes questões são filosóficas. Na neurociência, o quebra-cabeça da vez é a – ou pelo menos da última década – é mesmo a consciência. O que nos define? E é curioso que vemos filmes de ficção onde pessoas transferem suas memórias, seus cérebros. E aí eu me pergunto: se eu conseguisse transferir o meu cérebro para um computador e conseguir criar cópias de mim, seria eu esse computador e essas cópias? E se não, qual a diferença? Por que existe uma diferença? Acho essas perguntas fascinantes, mas não tenho a menor ideia de como respondê-las e acho que ninguém tem.

IT Forum – Por que, afinal, você escolheu ser um neurocientista?

RQ – Estudei física e depois fiz um doutorado em matemática aplicada, mas sempre fui fascinado pelo cérebro. Eu vi isso como o maior quebra-cabeça que há para resolver na ciência. Esse é o maior desafio da ciência. Minha frustração com a física, em parte, era que muitas das grandes descobertas já haviam sido feitas, sabe? Quando eu aprendi sobre mecânica quântica, por exemplo, fiquei fascinado, mas percebi que era “tarde” para me juntar a esse campo, já que tudo de mais empolgante aconteceu no início do século 20. Penso que deve ter sido incrível ir às conferências de Heisenberg propondo o princípio da incerteza, e então ver Einstein recebendo o Prêmio Nobel com isso. E eu sinto que este é o momento certo para estudar o cérebro.

IT Forum – Por quê?

RQ – Porque a maior parte do que sabemos sobre o cérebro surgiu nos últimos anos. É uma área que cresceu exponencialmente. Se reunirmos todo o nosso conhecimento a respeito do cérebro, teremos muito, muito pouco dos anos 1980 ou 1990. Alguns princípios básicos, talvez, mas todos os detalhes de como as coisas funcionam, como a memória funciona, como funciona a percepção, como funciona a tomada de decisões, consciência, todas essas questões muito intrigantes sobre o funcionamento do cérebro , a maior parte do que sabemos agora, são experimentos feitos nos últimos anos. Então, este é o momento certo para estar neste campo porque é exatamente onde e quando as grandes descobertas estão acontecendo.

IT Forum – Aprendizado requer memória, e esse é outro assunto que lhe interessa – você escreveu um livro sobre, inclusive…

RQ – Publiquei dois livros sobre isso, na verdade. Antes de The Forgetting Machine, eu lancei Borges and Memory. Borges é um escritor argentino muito famoso…

IT Forum – Super conhecido e respeitado, inclusive no Brasil.

RQ – Pois então, os meus textos e estudos de memória nasceram com um conto do Borges, chamado Funes the Memorious. É a história de um homem que não consegue esquecer nada; ele se lembra de absolutamente tudo, até os mínimos detalhes. A narrativa é fascinante e é bem curta, de talvez umas 12 páginas. O que acho surpreendente no texto é que, além de uma ideia brilhante, Borges conseguiu capturar muito bem a agonia de ter uma memória infalível.

IT Forum – Agonia, não seria uma benção se lembrar de tudo com perfeição?

RQ – Um aspecto-chave da humanidade é sua capacidade de esquecer. É contra-intuitivo, porque a gente sempre associa esquecer a algo ruim. Você vai à escola e aí na prova esquece tudo, e isso é péssimo. Você quer se lembrar de tudo, porque quer ser o melhor, mas a capacidade de esquecer, de certa forma, determina a inteligência humana. Borges disse isso explicitamente: pensar é abstrair, esquecer detalhes, focar nas coisas essenciais. E para focar nas coisas essenciais, você precisa se livrar de muitos outros detalhes que são irrelevantes. Então eu acho que um dos maiores desafios de copiar a mente humana é copiar a habilidade extraordinária que temos de esquecer e escolher o que é importante e entender o significado de algo e não ficar preso a detalhes. Acho que é a coisa mais interessante que aprendi e que apresento nos meus livros.

IT Forum – Aposto que você deve ter visto aquele famoso episódio de Black Mirror em que os personagens usam um aparelho que grava tudo o tempo todo…

RQ – Sim, para nunca esquecer…

IT Forum – Isso. Você acha, então, que para termos um computador super inteligente, esse tipo de recurso deveria ser desativado? Porque você fala que temos que esquecer…

RQ – Acho que uma das grandes diferenças entre um computador ou inteligência artificial e a inteligência humana é que os computadores não cometem erros. Deixe-me colocar desta forma: se você armazena um filme no disco rígido do seu computador ou no seu iPhone, você pode reproduzi-lo do início ao fim, e a reprodução é perfeita. Não existem erros. Não existem processos de esquecimento. Agora, se você mesmo assistir a um filme, tentar armazená-lo em seu cérebro, não será capaz de reproduzi-lo nem mesmo uma hora depois de assisti-lo, você esquecerá muitas das coisas. Mas a principal diferença é que você entendeu o filme, você entendeu o conteúdo. Então, se eu te perguntar do que se trata o filme, você pode me explicar a história, e pode argumentar e elaborar uma conversa a partir dele. Pode ainda fazer associações, lembrando de filmes que viu anos atrás e relacionar a obra a tantas outras. Então, basicamente, você tem uma compreensão do que acontece no filme. Agora, se você repetir a mesma pergunta a um computador, a máquina irá reproduzir o longa novamente, do começo ao fim, mas não será capaz de lhe dizer do que se trata o filme. Acho que a grande diferença é que dedicamos nossos recursos para entender, não para lembrar. Não nos lembramos muito, porque usamos nossos neurônios para entender, para selecionar muito pouca informação e entender o que essa informação significa. E é isso que é tão difícil reproduzir em um computador. Aliás, até agora é impossível.

IT Forum – E você acha que uma das maiores barreiras que temos hoje para avançarmos com máquinas e inteligência artificial é tecnológica ou moral/ética?

RQ – Depende do campo. Porque, por exemplo, avançamos muito nas interfaces cérebro-máquina. Conseguimos fazer com que pessoas paralisadas se mexessem. Há, claro, uma barreira tecnológica para progredirmos com isso, mas acredito que a maior barreira ainda é ética, porque você não pode fazer experimentos livremente nesta área, uma vez que está lidando com vidas e tem que ter muito cuidado. Muitas dessas abordagens envolvem algumas grandes cirurgias e alguns procedimentos invasivos com os pacientes, e então você tem que considerar o bem-estar do paciente e tem que considerar o que o paciente realmente deseja, porque, talvez, você esteja tentando dar ao paciente algo que o paciente realmente não quer. E o paciente vai dizer “não quero parecer o Robocop, vai ser horrível, prefiro ficar na minha cadeira de rodas”. Então, aí claramente temos uma barreira ética. Porque você não pode fazer o que quiser. Mesmo que você diga, bom, isso é para os avanços da ciência e assim por diante, você não tem permissão para fazer, porque quando você está lidando com o paciente, o paciente está sempre em primeiro lugar. Você sempre tem que priorizar as necessidades do paciente sobre os desenvolvimentos científicos que você gostaria de fazer.

IT Forum – Isso me lembra muito a apresentação da Neuralink, a empresa do Elon Musk que estuda implantar chips no cérebro…

RQ – Eu não vi a apresentação, mas me falaram sobre. Pra ser sincero, o que ele está propondo parece muito com algo que patenteamos dois anos atrás.

IT Forum – Pois nessa apresentação ele falava sobre solucionar problemas como a mobilidade e de que, eventualmente, se conseguirmos aprofundar o posicionamento do chip, seremos capazes de controlar as emoções, o que significa curar a depressão e a ansiedade, por exemplo.

RQ – Ele não deve saber muito de neurociência. Ele faz esses grandes anúncios sem conhecimento técnico. O controle da depressão já existe. Em primeiro lugar, você pode controlar a depressão de maneira farmacológica. Existem abordagens psicológicas, também existem abordagens farmacológicas e existem até abordagens invasivas. Algumas pessoas estão tentando a estimulação cerebral para controlar a depressão. E isso não é ficção científica. E não é Elon Musk propondo isso. As pessoas já estão recebendo implantes de eletrodos. Está acontecendo. Com a depressão, não está claro para mim se está funcionando ou se está mudando as coisas. E estamos falando sobre depressão muito, muito severa. Mas, por exemplo, esta é uma abordagem que funciona muito bem para pacientes com Parkinson, a estimulação cerebral. Então, você está estimulando uma área do cérebro. Eles colocam um eletrodo na parte de trás e você atinge uma área específica do tálamo e então estimula ali para o Parkinson desaparecer. É como mágica. E isso está funcionando. E como eles o usam para isso, uma abordagem semelhante é usada para pacientes com TOC. E também está funcionando. Eu sei que eles estavam tentando algo assim para a depressão. Então sim, em princípio, essas coisas são possíveis, mas chega a um ponto em que, novamente, você tem uma barreira ética, porque todas essas abordagens são feitas porque essas são pessoas que realmente precisam disso. Quer dizer, não é bom ter um TOC muito grave ou Parkinson, então se justifica colocar um eletrodo dentro do cérebro, porque até então a qualidade de vida do paciente é muito ruim. Agora, para induzir sentimentos ou coisas assim, não é justificado. Não podemos fazer isso.

IT Forum – É curioso que estejamos sempre procurando a perfeição, enquanto a mente humana é uma máquina imperfeita…

RQ – Mas eu acho que estamos perdendo um ponto importante: somos o resultado de milhões de anos de evolução. Deve haver uma razão pra isso, porque se conseguimos evoluir depois de tantas tentativas e erros, depois de tanta competição com outras espécies, tem de haver um motivo. Algumas pessoas argumentam e até empurram a ideia de que a tecnologia está desacelerando nosso cérebro, quando a verdade é que o funcionamento do cérebro é relativamente, naturalmente, muito lento. Por exemplo, a partir do momento em que reconheço algo e reajo, levo uma fração de segundo para reagir, talvez 300 milissegundos ou meio segundo. E isso é muito lento, porque um computador pode fazer isso muito mais rápido do que eu. O lance é que talvez o cérebro seja lento por um motivo. Talvez seja lento porque simplesmente não reagimos intuitivamente a tudo; levamos nosso tempo para processar informações e avaliar se queremos ou não reagir. Então, talvez essa desaceleração do processo cerebral tenha um propósito evolutivo.

IT Forum – Frequentemente vemos em filmes e livros futuristas a inteligência artificial competindo com a humanidade. Você acha que seria mais certeiro apostar em uma colaboração do que numa disputa? Quer dizer, a tecnologia, como você disse, pode ser uma ferramenta para a nossa própria evolução…

RQ – Acho que é algo mais natural que isso. Digamos, por exemplo, que eu sou o diretor de uma organização e eu tenho uma secretária, mas não quero lidar com o agendamento das consultas porque prefiro focar em algo mais relevante, que é desenvolver meu negócio. O fato de eu poder delegar uma parte do meu trabalho, que no caso é o agendamento de consulta e o relacionamento com o cliente para outra pessoa ou para uma máquina, é positivo. Quando eu viajo, não quero perder uma hora do meu dia decifrando um mapa, prefiro digitar o endereço no navegador que me direcione para o meu destino. Dito isso, acho que a inteligência artificial é muito útil, mesmo que não seja exatamente necessária.

IT Forum – Por conta do seu conhecimento acadêmico e até literário, autores e roteiristas o procuram quando trabalham em narrativas de ficção científica?

RQ – Esse é meu sonho. Se você me perguntar o que gostaria de fazer, eu quero escrever o Black Mirror argentino. É meu maior desejo e já estou conversando com produtores. Quando eu morei nos Estados Unidos, eu estava mais focado na ciência, mas agora minha atenção está na ficção científica. Sobretudo porque eu acredito que nós, neurocientistas, estamos trabalhando em ideias e projetos que, para a maioria das pessoas, soaria como ficção.

IT Forum – Poderia me dar um exemplo de uma dessas ideias “absurdas”?

RQ – Estamos implantando memórias com estímulos cerebrais. Sério, podemos implantar memória. Isso já foi feito. Podemos criar falsas memórias; posso fazer com que você acredite em algo que nunca aconteceu na sua vida e você não vai desconfiar que é falso.

IT Forum – Qual o propósito disso? Me parece muito perigoso ser capaz de implantar memórias falsas…

RQ – Bem, acho que preciso fazer um adendo para garantir que você entenda o que estou falando. Quando eu falo implantar e estímulo, quero dizer sugestão. Não é que estamos colocando eletrodos no cérebro alheio. Isso nos ajuda a entender como o cérebro funciona e como as memórias são maleáveis. Porque você pensa ” bem, minhas memórias são reais e elas estão gravadas em pedra”. Mas isso não é verdade. E o fato de que podemos manipular a memória tão facilmente mostra como somos maleáveis.

IT Forum – Por que moldaríamos a memória de uma pessoa, com sugestões?

RQ – Se você realmente quer ir para aplicações, por exemplo, você tem transtorno de estresse pós-traumático, com pessoas vindo de situações de guerra. Se você pode mudar memórias, talvez você possa quebrar esse elo de que alguns gatilhos particulares farão o paciente desenvolver ansiedade e outros transtornos. Então não é que você vai mudar a memória das pessoas para reescrever a história, porque mesmo que seja para o bem do paciente, seria antiético. Você não pode apagar as memórias dessa pessoa durante a guerra, o que você pode fazer é evitar, de alguma forma, as consequências dessas lembranças, como um ataque de pânico, por exemplo. E entender como o sistema funciona, eu acho, dá a você algumas ferramentas para ter um controle sobre isso.

 

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