Nikola Danaylov: pessoas e empresas precisam reescrever a história para sobreviver

Pensador búlgaro fala com exclusividade sobre seu novo livro, que sugere que o nosso futuro depende de uma reinterpretação do passado

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6:54 pm - 11 de outubro de 2021
Nikola Danaylov Nikola Danaylov. Foto: Divulgação

Ele pensa o futuro investigando o passado, e agora quer reescrever a história para mudar o final (trágico) da humanidade. A explicação do trabalho do búlgaro Nikola Danaylov é tão linear quanto sua trajetória profissional, que foi do ambiente acadêmico aos comentários e likes da internet.

Formado em Ciências Políticas, o pensador, que desde 1988 está radicado no Canadá, resolveu trocar os estudos e as teses de graduação para difundir o conhecimento que já acumulava, e dividir todo novo conhecimento adquirido.

Foi assim que surgiu, em 2009, o blog e canal Singularity, comandado por Nik – como Danaylov gosta de ser chamado. “O Singularity Weblog não pretende fornecer respostas definitivas, mas sim fazer perguntas difíceis na tentativa de gerar discussão, provocar reflexão e despertar a imaginação. O objetivo é iniciar uma conversa sobre o impacto da tecnologia, do crescimento exponencial e da inteligência artificial, onde a opinião e a participação de todos são fortemente encorajadas”, explica o pensador em sua página.

Hoje, com público fiel e mais de mil entrevistas levadas ao ar, Nik fez da qualidade do seu bate-papo sua principal bandeira, tanto que entre amigos e críticos, ele é conhecido como o “Larry King of the Singularity”, em homenagem ao falecido apresentador e entrevistador americano.

Paralelamente ao comando do programa digital, Nik se dedica à finalização de seu mais recente livro – o segundo de sua carreira. Antes do ainda não publicado “Reescrevendo a História Humana”, o búlgaro assinou, em 2017, a obra “Conversando com o Futuro”.

Entre um capítulo e outro, Nik recebeu a reportagem do IT Forum para explicar sua nova tese e de como sua ideia pode significar a sobrevivência da nossa espécie.

IT Forum – Nik, poderia nos contar um pouco sobre o livro que está escrevendo?

O livro que estou escrevendo se chama “Reescrevendo a História Humana – Como Nossa História Determina o Futuro”, e a tese da obra é que a humanidade tem uma história. Temos que agradecer a essa história por ter chegado aonde chegamos, e entender que, assim como ela nos trouxe Auschwitz, também nos levou à Lua, a Marte e além. Não apenas isso, mas as últimas duas décadas do século 21 demonstraram claramente que nossa história vem se desmoronando. Desmoronando politicamente, economicamente, legalmente, eticamente, sociologicamente, economicamente e até mesmo ambientalmente. Então temos uma escolha. Será que funciona? Kenneth Burke, o famoso crítico literário, disse que histórias são ferramentas necessárias para viver, porque elas nos dizem quem somos, de onde viemos e para onde estamos indo. Assim, devemos atualizar nossas ferramentas ou iremos nos tornar obsoletos porque nossa história atual não é mais suficiente, está virando obsoleta. A não ser que essa história seja atualizada, iremos nos tornar obsoletos também. Esse não é um processo novo ou único, nossa história já foi escrita diversas vezes.

IT Forum – Quando exatamente reescrevemos a história?

Reescrevemos a história durante a Revolução Industrial, o Renascimento e o Iluminismo – esses tipos de eras em que a humanidade sai da escuridão e que basicamente, como Dostoiévski disse, “matamos Deus”. Popularmente a frase é “Deus está morto”, mas Nietzsche escreveu “nós matamos Deus” e tomamos seu lugar como centro do universo. Assim, os seres humanos viraram a espécie mais inteligente no planeta, o pináculo da evolução e a medida de tudo. Então inventamos uma nova história e, baseado nessa história, nós decidimos o que é certo, o que é errado; o que está em cima, o que está embaixo; o que precisa ser feito e o que não precisa ser feito; de onde viemos; quem somos enquanto espécie e indivíduos; onde nos encaixamos individual e coletivamente no universo; qual nosso propósito; qual nossa razão e propósito de existência e para onde estamos indo no cosmos. Então, essa história, chamada “Humanismo”, naquele momento, trouxe-nos ao século 21. O problema é que essa história não faz mais sentido com apenas uma funcionalidade. Essas histórias nos dão ferramentas necessárias para viver; que servem a três grandes funcionalidades: a primeira nos diz quem somos e de onde viemos. A segunda nos ajuda a entender o mundo como é hoje. A terceira nos diz aonde vamos amanhã.

IT Forum – Mas a história não é linear…

Infelizmente não conseguimos entender o que está acontecendo no mundo ao nosso redor. As coisas estão mudando mais rápido e de maneira tão difícil como nunca havia acontecido. Temos tecnologias exponenciais, mudanças disruptivas. O século 20 foi uma batalha entre três grandes histórias: capitalismo, comunismo e fascismo, que foi o primeiro a se tornar obsoleto. Depois disso foi o comunismo. Agora, o capitalismo que proclamou sua vitória ao final do século 20, nas últimas duas décadas tem nos mostrado que essa história não mais é verdade. E já que histórias são o que une civilizações, nações ou grupos de pessoas, podemos perceber que a humanidade está desunida, não conseguimos concordar com as coisas mais simples, quanto mais as complicadas. Não conseguimos nem concordar sobre fatos, coisas básicas e observáveis. E o motivo disso é que não temos uma história que explique o mundo como é hoje, que explique o que está acontecendo no mundo, quanto mais uma história que nos explique onde estamos e para onde devemos ir amanhã. Então meu argumento, minha tese, em poucas palavras, é que se você reescrever sua história, você muda seu futuro. E isso é verdade tanto no nível individual quanto no coletivo, corporativo, empresarial, em organizações internacionais ou nações.

IT Forum – Há quem diga que a humanidade se autocorrige. Como você bem disse, nós tivemos o terrível caso do nazismo, mas hoje não temos mais casos de judeus sendo abertamente perseguidos – e eu gostaria de enfatizar o “abertamente” aqui.

Quando analisamos evidências estatísticas nos últimos anos, o preconceito contra judeus, muçulmanos e asiáticos aumentou. Tivemos muitos ataques contra essas minorias ao redor do mundo. Claro que a pandemia exacerbou esse sentimento contra a comunidade asiática e já havíamos o mesmo tipo de sentimento contra a comunidade judeus. Sabe, tivemos uma grande marcha de tochas em Charleston, mas aí um homem atropelou 20 pessoas. Uma jovem morreu, infelizmente. Temos esse tipo de nacionalismo, populismo, ataques ao redor da Europa inteira contra os ciganos. Temos ataques contra judeus na França, ataques contra sinagogas e mercados judeus, sequestros e assassinatos acontecendo lá. Então, na verdade, o racismo está aumentando ou mais explícito do que era nas últimas décadas. Se observarmos alguns governos e presidentes, você é brasileira, né? Seu presidente é igualzinho a Trump e ao presidente das Filipinas. Assim como muitos presidentes europeus em países como Hungria, Polônia e etc., suas políticas beiram o racismo e em alguns casos o são explicitamente, certo? Então discordo de você, a humanidade não está se autocorrigindo. Acredito que fascismo, nazismo e se olharmos para a Itália, até para a Alemanha, em ambos os países temos um aumento em incidentes nazifascistas.

IT Forum – Seu ponto é bastante interessante, sobretudo porque ele me lembra o enredo de um filme cujo argumento final é que a auto-aniquilação seria instintiva. Ninguém entende exatamente quando e porquê o nosso corpo para de funcionar da forma que devia – o envelhecimento seria, portanto, uma deterioração. Então, você acha que, de alguma forma, a humanidade tem este instinto destrutivo?

Não sei se é instinto, mas acredito que se continuarmos do jeito que estamos indo, nós definitivamente somos suicidas, porque estamos num planeta finito, com recursos finitos e nossa ganância pelo consumo é infinita. Estes dois fatores são incompatíveis. Combine isso com um crescimento populacional que só aumenta. A expectativa é que daqui até 2050 talvez cheguemos a um nível perto de dez bilhões de pessoas, aproximadamente, e algumas projeções dizem que esse número pode ser menor, porque muitos países em desenvolvimento estão desacelerando a natalidade. Ainda assim, independente do que aconteça no futuro, ainda temos um crescimento global. Então, quando combinamos aumento de consumo, aumento de taxa de natalidade, com uma história que justifica o que estamos fazendo, uma história que nos diz que a humanidade é a medida para tudo, porque somos os mais inteligentes, somos os melhores e os mais espertos, somos o auge da evolução; uma história que nos conta que os animais são nossos porque foram criados para nos servir e entreter, que o mundo é nosso jardim onde podemos fazer o que quisermos. Quando combinamos essa narrativa, temos como resultado pressões financeiras, materiais e de crescimento populacional no sistema, e nosso planeta é finito. Então o resultado disso pode ser suicida e isso pode ser uma das possíveis explicações ao paradoxo de Fermi.

IT Forum – Paradoxo de Fermi é aquela contradição entre as altas estimativas de probabilidade de existência de civilizações extraterrestres e a falta de evidências para, ou contato com, tais civilizações, certo?

Sim. Olha, estamos no planeta por cerca de 4 bilhões de anos, o universo existe há cerca de 14 bilhões de anos e o universo já existia 10 bilhões de anos antes de nós, então onde estão os alienígenas? Pode haver muitas explicações. Uma delas poderia ser que civilizações, civilizações inteligentes são como espécies no planeta Terra: elas nascem, vivem, depois morrem. Há uma possibilidade que aconteça o chamado filtro da singularidade, quando a civilização alcança um determinado ponto no desenvolvimento tecnológico. Podemos estar chegando nesse estágio no momento, no século 21. No momento, já poderia acontecer uma autodestruição. Quando avaliamos com cuidado nossos maiores dilemas, as maiores ameaças existenciais como armas nucleares, mudanças climáticas, pandemias – não como as da Covid-19, mas talvez como suas mutações ou talvez com versões geneticamente modificadas do vírus, como uma arma de destruição em massa –, também temos armas químicas e grandes problemas como erosão do solo e acidificação dos oceanos. Uma extinção de espécie está acontecendo, estamos no meio da chamada sexta extinção, a mais rápida da história do nosso planeta. Então você poderia dizer: “bom, esses são problemas diferentes”. Na verdade, são o mesmo problema repetindo-se várias vezes em contextos diferentes.

IT Forum – Qual seria esse problema, exatamente?

Esse problema é basicamente que a tecnologia humana, nosso poder tecnológico, está ultrapassando por muito nossa sabedoria em usá-lo de maneira segura, de maneira produtiva, sem que seja autodestrutivo ou suicida. Então, esse poder continua aumentando à medida que a humanidade vem se aproveitando dele desde a Revolução Industrial, e podemos ter uma história dizendo que está tudo bem e que podemos usar esse poder de qualquer forma, mesmo que leve a uma destruição absoluta, porque é isso que a história atual nos diz, porque somos os mais inteligentes, o auge, o centro e a medida de tudo e tudo é nosso pra fazermos o que bem entendermos.

IT Forum – Então você quer dizer que isso poderia nos levar a um suicídio acidental?

Sim, e por isso digo que é uma questão de sobrevivência escrever uma nova história que mude nossos sistemas de valores e ética, porque o atual nos bota acima de tudo e de todos, e prioriza nosso conforto à sobrevivência de outras espécies. Em nosso planeta, matamos trilhões de organismos todos os anos. Claramente o planeta não conseguirá sustentar uma espécie como a nossa. Como o agente Smith falou, “talvez nós sejamos o vírus”. O que estou dizendo é que a boa notícia é que, se nós somos o problema, podemos ser também a solução. Sabemos que temos talvez algumas décadas antes do colapso da civilização. O colapso da civilização não significa o fim da humanidade, a humanidade sobreviverá em alguns lugares aqui e ali, mas a vida será novamente sórdida, bruta e curta. Não é impossível que esses lugares eventualmente também entrem em extinção. Enquanto mantivermos nossas histórias sobre quem somos enquanto indivíduos, de onde viemos e aonde estamos indo, continuaremos fazendo as mesmas coisas.

IT Forum – Poderia nos dar um exemplo mais prático da sua teoria?

Digamos que você seja fumante e gostaria de parar de fumar, mas a história que conta é que você gosta de se divertir e aproveitar um cigarrinho aqui e ali, e não tem nenhum problema fazer isso dessa maneira. É provável que você nunca pare de fumar. Porém se você reinventar sua própria história e disser a você mesma “sou uma não-fumante, não fumo porque não-fumantes não fumam e pronto” ou “não como animais porque sou vegana e me importo com animais” ou “não abuso de mulheres” ou “não atiro em pessoas” ou “exercito-me regularmente”. Todas essas histórias, toda essa mudança de comportamento é resultado de uma história de identidade que nós pessoalmente adotamos. Se mudarmos essa história, podemos olhar para o mesmo mundo com a mesma evidência que sempre tivemos, mas tomar novas atitudes porque conseguimos enxergar essas mesmas coisas sob uma perspectiva diferente. Então não são evidências que nos fazem mudar nosso comportamento. É a história através da qual examinamos as evidências e as aceitamos ou negamos. É por isso que, por exemplo, pessoas que têm uma história bem particular sobre quem são, de onde estão vindo e onde estão indo, negam que mudanças climáticas são reais. Negam a crise do coronavírus simplesmente porque a evidência monumental não se encaixa na sua história específica de mundo. Enquanto mantiverem essa história, estarão tão apegadas a ela que não levarão em conta nenhuma evidência que aparecer. Então não, não é uma questão de mudar a cabeça das pessoas ou discutir evidências, evidências não fizeram diferença para Bolsonaro. O Brasil quebrou recordes de pessoas morrendo, vi que chegou a 4.200 pessoas por dia alguns dias atrás, certo? Isso é chocante, simplesmente horrível, porém sua história é incompatível com as evidências. Então seus apoiadores têm duas escolhas, aceitar as evidências ou a história. Estão no momento se agarrando à história de maneira tão forte que não importa que a quantidade de evidências aumente, vão continuar negando. Isso pode acabar sendo suicídio. É homicida, de certo modo. Podemos dizer que foi negligência profissional ou até uma negação homicida, mas no longo prazo é suicida. O que o presidente do Brasil e até mesmo o presidente Trump e outros ao redor do mundo fizeram foi uma espécie de suicídio nacional.

IT Forum – Isso me soa como aquela teoria d’O Segredo, sabe? Se você acredita em algo, então começa a aceitar sua ideia e, então, muda a maneira como pensa sobre ela e a maneira como age…

Não, não tem nada a ver e, pessoalmente, não sou fã de “O Segredo”

IT Forum – Mas não é isso o que diz: mude a história que você muda seu comportamento?

Não, O Segredo passa uma ideia de que se você quer algo de maneira suficientemente intensa e se você acredita de maneira suficientemente intensa, o universo te dará agora mesmo. Não é assim que funciona, o que estou dizendo é que o que acontece no universo não é algo que conseguimos controlar. O que conseguimos controlar é nossa atitude em relação ao mundo, ao universo e ao que acontece ao nosso redor. Essa atitude é determinada pelas nossas histórias porque, como Nietzsche disse, “dê a um homem um ‘porquê’ suficientemente poderoso e ele aguentará qualquer ‘como'”. Bem, a história nos conta o “porque”, o motivo de fazermos algo. Essa história pode fazê-lo aguentar até mesmo o inferno de Auschwitz, assim como foi para Viktor Frankl – que escreveu o belíssimo e inspirador “Em Busca de Sentido”. Não é como se pudéssemos materializar o universo que queremos. Não, tudo que podemos fazer é agir em resposta ao mundo ao nosso redor, às pessoas ao nosso redor. O que é certo e errado vem da história que adotamos sobre quem somos como indivíduos, de onde viemos e aonde estamos indo, certo? Então, caso uma pessoa tenha perdido sua história, ela se torna suicida. Ela começa a ficar deprimida e suicida. Acontece frequentemente em muitas profissões, sobretudo naquelas onde temos uma interseção grande entre o ofício e a identidade, como soldados, policiais, bombeiros, músicos, artistas e atletas.

IT Forum – Podemos nos aprofundar mais nisso?

Digamos, por exemplo, que você seja um soldado e tenha sido um soldado por um tempo. Você é um bom soldado e tem sido por várias décadas, mas se machuca. Daí você se aposenta, porque não pode mais prestar o serviço, ou você é um atleta, um policial ou um artista. De repente, então, você sofre um acidente e perde sua mão, ou coisa parecida, e não consegue mais fazer o que fazia. Em muitos dos casos não tem nada nem fisicamente errado com você, mas por você estar tão ligado àquela história que você é um soldado, “eu sou um soldado”, e agora não pode mais ser, essa história que você tinha antes não se adequa à sua realidade atual, e a não ser que você modifique essa história anterior para viver na nova realidade, e se adaptar e criar uma identidade, uma nova história e baseado nessa nova história você pode ter uma nova identidade sobre quem é, de onde vem e aonde está indo. A não ser que você faça isso, acabará deprimido. Em muitos casos, cometeria suicídio, certo? Esse é o poder da história e se você tiver uma história forte o suficiente, você consegue sobreviver até ao inferno. Até em Auschwitz, muitas pessoas sobreviveram por ter tido um filho, por terem algo para fazer ou alguém para ver, alguma motivação, alguma história que os fez continuar. E houve outros que desistiram, literalmente desistiram e morreram, no chão dos campos de concentração em alguns dias. Victor Franco descreve esses casos com muitos detalhes e como você consegue identificar quando alguém desistiu completamente, certo? Quando uma pessoa decide que já não tem mais significado, propósito ou história. O que quero dizer é que é aí que está nosso poder tanto individual quanto coletivo para organizações, corporações e nações. Tudo é uma história, todo mundo é uma história.

IT Forum – Mas corporações também?

Sim, a história da Apple, por exemplo, é “pense diferente”. A história da Google é “organizar a informação do mundo”. A história dos Médicos sem Fronteiras é “fornecer serviços médicos onde há maior necessidade”. A história da Calico, uma startup da Google para combater a morte e envelhecimento é “curar a morte”. A história de Zuckerberg para sua fundação com sua esposa é a “cura de todas as doenças”, certo? Essas histórias têm diversos efeitos. O primeiro é que elas conseguem trazer pessoas. A equipe inteira se une sob sua bandeira. O segundo é que elas conseguem motivar pessoas jovens. Millennials não se motivam tanto pela história do dinheiro quanto a geração anterior, pois dinheiro é uma das histórias mais populares. O motivo disso é que, novamente, dinheiro não existe. Não é algo físico. Você não consegue cheirá-lo, tocá-lo, comê-lo. Você pode encostar no papel, mas o papel não tem nenhum significado por si mesmo, você não pode usá-lo para nada. No momento em que outras pessoas param de acreditar neste papel como dinheiro, ele perde seu valor. Se olharmos agora para o Bitcoin, por exemplo, e assim por diante, não existe nem uma representação física dele. É tudo 0 e 1 digital, certo? Então, é uma história. E conseguimos ver o quão grande a história das criptomoedas é agora que representam dezenas de milhares de dólares e as pessoas estão gastando grande somas de dinheiro nelas. Até mesmo pessoas que discordam de tudo. Por exemplo, Osama Bin Laden odiava tudo sobre os Estados Unidos, cultura, filmes, a religião cristã, a política, tudo estadunidense. Ele odiava, mas adorava seus dólares. Ele aceitava dólares sempre que podia. Por quê? Porque os arqui-inimigos Estados Unidos e Osama Bin Laden, a Al-Qaeda e o ISIS, todos acreditam na história do dólar. Compartilham uma história em comum. Discordam de todo o resto, querem a lei xaria, mulheres em hijabes, execuções públicas e tudo o mais, porém aceitam a história do dinheiro. Por isso que essa história é tão poderosa, mas é apenas uma história. Ela não existe na natureza, em outras espécies. É uma invenção da mente humana.

IT Forum – E por falar em mente humana, Nik, você teve a sorte de entrevistar algumas das pessoas mais inteligentes e interessantes que existem. Tem alguém que mudou sua história ou sua interpretação de algumas histórias?

Com certeza. Comecei a fazer pesquisas relacionadas à inteligência artificial e transumanismo por volta de 2003. Eu estava fazendo um mestrado numa universidade sobre conflito armado e procurava por um tópico novo sobre o qual não havia muitos artigos escritos ainda. Nessa época, o uso de drones em missões militares ainda estava engatinhando, então decidi fazer minha tese neste tópico. Uma coisa levou à outra e acabei lendo o livro “A Singularidade está Próxima” e, como num golpe de destino, depois do livro de Ray, acabei lendo “Acelerando”, de Charles Stross, que é a versão em ficção científica de A Singularidade está Próxima, e ambos os livros me surpreenderam muito positivamente. Passei a achar que a singularidade está próxima, inteligência artificial, transumanismo, tudo vai mudar e tudo o mais. Como resultado disso, essa foi a primeira vez em que uma história nova, que eu não conhecia, mudou minha perspectiva sobre tudo. O mundo não mudou ao meu redor, mas minha história sobre onde o mundo está e para onde está indo, mudou. A partir daí passei a ver o mundo de uma maneira completamente diferente, incluindo como vejo a mim mesmo e meu propósito no mundo. Eu imaginava que continuaria no mundo acadêmico, que faria um doutorado, eventualmente seria um professor e tudo o mais. Depois dessa história, decidi não mais continuar no mundo acadêmico e ir para o mundo real, espalhar a mensagem e ajudar a humanidade navegar nas águas da inteligência artificial. Essa foi uma das mudanças significativas.

IT Forum – Nik, isto dito, você acredita que é realmente possível mudar nossa história? Nosso mundo está ficando cada vez mais polarizado e dividido de muitas formas. Parece que as pessoas não estão dispostas a renunciar de conforto e tudo o mais. Ainda assim, renunciamos à nossa saúde para termos dinheiro e comprar iates e outras coisas supérfluas, de puro luxo. Você acha que realmente dá para mudar isso?

Cem porcento! Quando olhamos a história do mundo, toda vez que tem uma grande revolução ela é precedida por uma mudança na história. Jesus, por exemplo, veio e nos contou uma história. Maomé veio e nos contou outra história. Buda veio e nos contou outra história. Em todas as situações temos um líder principal, uma mudança da humanidade, o nascimento de uma religião, de uma filosofia. Sócrates. Todos esses tipos de história tiveram impactos duradouros ao longo do tempo, até a guerra de Tróia, que aconteceu há provavelmente 3000 anos. Muito dela foi um mito, claro, e tudo que foi transmitido foi feito verbalmente por milhares de anos até ser registrado etc. Então há apenas alguns pedaços minúsculos de verdade, mas essa história continua tendo força até hoje. O cristianismo, assim como o Islã, como Budismo ou Judaísmo e outras grandes religiões são apenas histórias. Quando aconteceu a Revolução Francesa, o que tivemos foi uma mudança de história, certo? Tínhamos uma história do direito divino do rei. Por mil anos acreditávamos que o rei era o representante de Deus. Então, as pessoas eram pobres porque Deus havia determinado que fossem, por conta de seus pecados. O rei era rei por direito, por ser o representante de Deus na terra. Bem, as pessoas acreditaram nisso por mil anos, então numa década, quase do dia para a noite, surgiram vários filósofos escrevendo vários artigos desafiando essa história. De uma hora para a outra, a maioria das pessoas na França estavam a favor da liberdade, igualdade e fraternidade. E a Revolução Francesa aconteceu, decapitaram o rei, a rainha e muitos outros nobres, certo? Havia uma história do rei britânico nos Estados Unidos como colônia, o rei sendo o chefe de estado. Na Revolução Americana, essa história desabou por conta de taxação sem representação, essa história foi enfraquecida até o ponto em que desmoronou e o mesmo aconteceu no Brasil e outros lugares da América do Sul. Todos eram países coloniais e, de uma forma ou outra, acabaram conseguindo sua liberdade entre o século 19 e o século 20.

IT Forum – Porém, mudar as histórias veio também com um preço. Muitas pessoas perderam suas vidas, houve uma perda. Você acredita que isso pode acontecer de novo, desta vez?

Olha, sempre tem um preço, há um preço para ações, assim como há um preço para inação. Sabemos qual será o preço se não agirmos em relação a mudanças climáticas: devastação ambiental, colapso das espécies… vamos pescar todos os peixes do mar nas próximas décadas. Todos sabemos onde essa história termina. A história atual acaba daqui a 20 ou 30 anos, não como um fim absoluto, mas tudo que conhecemos como civilização humana não será sustentável após isso, não teremos mais a mesma oferta de comida. Não teremos o clima, a água, todos esses problemas, certo? Caso não mudemos o que estamos fazendo. Sabemos então que a inação tem um preço. Assim, a ação também cobraria seu preço – e existem ações boas, ruins, ações estúpidas, ações inteligentes, mas, de qualquer forma, antes de ações precisamos de uma história. Albert Einstein disse que não há fatos sem teoria, certo? O que é uma teoria? Uma teoria é uma história. Albert Einstein tinha uma história sobre a relatividade, uma história sobre a luz e tudo o mais. Era uma história, uma boa história, mas não era nada mais do que uma história até alguns cientistas fazerem experimentos científicos e empíricos durante um eclipse solar, que confirmaram a história de Einstein. Porém, antes dos fatos, da evidência, tínhamos uma história. Toni Morrison, uma escritora vencedora do Pulitzer disse que fatos podem existir sem inteligência humana, mas não podem existir verdades, porque para isso precisamos de uma história. Do mesmo modo que precisamos de uma história para o que é bom, ruim, maligno, certo, errado, cima, baixo, esquerda, direita. Para tudo isso precisamos de uma história porque são relativos, não podemos ter o bem sem saber o que é certo, e para termos ambos precisamos de uma estrutura através da qual os avaliamos, né? Shakespeare diz que “o bem e o mal não existem; porém, ao pensar neles, os concretizamos”. Assim, nada é bom ou ruim até que começamos a pensar, apenas “são”. Não existe bem ou mal no universo, o universo apenas “é”. Nós, com nosso pensamento, criamos o bem e o mal, os interpretamos como bem ou mal. Epiteto leva essa ideia adiante e explica os mecanismos sobre como isso funciona. Ele diz que não sofremos com os eventos da nossa vida, mas com as histórias que criamos para eles.

IT Forum – Como assim?

Digamos que algo aconteceu comigo e estou devastado. Foi a pior coisa da minha vida, o pior que já aconteceu comigo, algo horrendo, não consigo acreditar que aconteceu. Por que aconteceu comigo? Não mereci, onde foi que errei? Como que aconteceu etc. e aí outra coisa acontece, dias, meses ou anos depois, e começamos a pensar “se isso não tivesse acontecido, essa outra coisa também não teria acontecido e esta outra coisa é a melhor que já aconteceu em toda minha vida, a melhor”. Portanto, o primeiro evento foi o melhor porque, sem ele, o outro não teria acontecido. Nada mudou em nenhum dos casos no que diz respeito a evidências factuais – o que aconteceu não mudou. A única coisa que mudou foi a história através da qual eu encaro esses eventos e em um dos casos a história anterior me dizia que era o pior cenário, no outro caso a história nos conta que é a melhor coisa, certo? Como Epiteto disse, não sofremos com os eventos em nossas vidas, mas com as histórias que criamos sobre eles.

IT Forum – Aí entra Buda dizendo que a vida é sofrimento e a fonte desse sofrimento é o desejo…

Exatamente, a única maneira de parar com o sofrimento é deixar os desejos para lá e não ficarmos apegados a eles. Se conseguimos fazer isso, não sofremos mais. Por isso os budistas têm vários princípios. Um deles é evitar a escolha, apenas seguir o fluxo porque eles não sabem o que é bom ou ruim. Então apenas seguem o fluxo e o propósito. Viktor Frankl fez o mesmo quando estava nos campos de concentração. Ele sobreviveu a três campos de concentração horrendos: Buchenwald, Auschwitz e um terceiro que não me lembro o nome. Ele fez isso através da não-escolha. Mesmo quando diziam para ele que se fosse numa fila específica ele acabaria morrendo, ele ainda assim dizia “estes são meus amigos, eu vou com eles, a não ser que algo aconteça para me tirar daqui”. De algum modo ele sobreviveu, com um pouco de sorte, claro, mas também através do fato que ele tinha uma história que o deu motivação para continuar. Sua esposa foi assassinada, seus pais foram assassinados, uma de suas irmãs foi assassinada e talvez uma outra sobreviveu. De qualquer forma, a maioria dos seus parentes, incluindo sua esposa, foi assassinada. Seu livro, seu manuscrito, foi destruído. Seu sentido para a vida foi que ele era um psiquiatra ou psicólogo, tinha uma oportunidade única de observar a natureza humana em condições extremas dos campos de concentração nazistas. Então ele pensou que poderia usar essa oportunidade de um ponto de vista científico e profissional e usar essas observações para melhorar seu livro e escrevê-lo após sobreviver, caso sobrevivesse, e este era seu significado e propósito, escrever um livro e melhorar a condição humana. Quando sobreviveu, escreveu seu livro “Em Busca de Sentido” que li três ou quatro vezes e recomendo a qualquer pessoa.

 

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