Mario Sergio Cortella fala sobre educação, economia e o papel do empresariado brasileiro

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9:00 am - 18 de março de 2014
Mario Sergio Cortella fala sobre educação

A entrevista com Mario Sergio Cortella, professor da PUC-SP, Fundação Getúlio Vargas e da Fundação Dom Cabral, além de consultor e filósofo, poderia correr tranquilamente, feito a fluidez do seu discurso, não fosse o fato de ser tão provocativa. Apesar dos meus poucos anos na área de TI, a tentativa de achar um culpado que não fosse o próprio setor falou mais alto na hora de desenhar a pauta sobre educação. 

A ideia é trazer o assunto à reflexão, uma vez que o nosso mercado (tomo a liberdade de me incluir no segmento de tecnologia, não como empresária, como você leitor, mas como parte atuante dele) passa por um momento delicado quanto ao seu promissor futuro, que diz respeito a profissionais qualificados para assim fazê-lo.

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Cortella, com sua delicada paciência, explica onde estão os equívocos de colocar governo e instituições de ensino, tanto pública como privada, na berlinda na hora de partir para a solução deste problema. Acompanhe a entrevista em que o filósofo e consultor levanta algumas contradições no pensamento do empresariado brasileiro e aponta caminhos a se seguir.

CRN Brasil – O Brasil está comprometendo o desenvolvimento do País por conta da falta de priorização no setor da educação?

Mario Sergio Cortella – Não se pode confundir educação com escolarização.  O Brasil tem questões ainda sérias no campo da escolarização. Há um atraso histórico nos vários níveis de ensino que só começou a se recuperar nos últimos 20 anos. Neste período, nós saímos de patamares indigentes na área de escolarização e estamos em uma crescente. Mas isto não acompanha nosso desenvolvimento econômico.

Precisa cautela, porque muita gente faz uma conexão automática entre escolarização e produção econômica e quem assim faz precisa explicar algo: nós somos o 66º em escolarização, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), e somos a 6ª economia. Se fosse tão automático não teríamos este cenário.

Quem faz a conexão automática teria de me explicar uma coisa: se nós passarmos ao décimo lugar em educação, nós vamos ser o primeiro em economia? Claro que não!  Por quê? Porque não se pode confundir educação com escolarização.  Embora a nossa escolarização seja baixa, os índices de educação, em geral, em relação à família, ao mercado de trabalho não é. Se não, não seríamos a sexta economia!

CRN – Qual é a diferença entre escolarização e educação?

Cortella – A educação é um conceito mais amplo. Escolarização está dentro de educação. Você está o tempo todo se formando: na família, no emprego, na comunidade, no sindicato, na igreja… Um dos locais onde você se forma é na escola. Mas, por exemplo, os meios de comunicação formam por muito mais tempo um cidadão do que a própria escola.

CRN ? Hoje uma criança fica muito mais exposta à mídia do que à escola…

Cortella – Exato.  A escola é uma das instituições educacionais e não a única. Eu estou insistindo neste ponto porque, caso o contrário, como a gente entenderia este aparente contrassenso entre desempenho escolar e econômico? Isso significa que a escola não formaria mesmo gente o suficiente para ocupar estas 115 mil vagas no mercado de TI. E ela não formaria por uma razão meio óbvia: não tem como a escola ficar atrelada ao mercado de trabalho. Em outras palavras, não adianta o sistema escolar – que é mais lento, que demora uma geração para trabalhar – grudar em uma única área porque, do contrário, ele não cumpre sua função pública.

CRN ? Você pode dar um exemplo de como isto aconteceria?

Cortella – Vamos supor que na região de Jundiaí (SP) – onde estão se instalando algumas empresas da área de plataformas digitais vindas da China – todo o parque escolar da região se volte para a formação de pessoas naquela área. Vamos supor que o poder público coloque a escola a serviço da empresa. Daqui a pouco, o proprietário chinês vai embora. O poder público investiu em algo que não terá prosseguimento.  Isto é, uma escola precisa se referenciar ao mercado, mas ela não pode se subordinar. Inclusive porque a escola não pode ficar prisioneira do mercado de trabalho.

CRN – O currículo escolar hoje, no Brasil, se propõe a formar pessoas com habilidades básicas e a formar cidadãos éticos. Uma pesquisa recente mostra que 77% dos encarcerados no Brasil não completaram o ensino fundamental. Por que isto não ocorre?

Cortella – Ok. Mas a que conclusão você chega com esta informação? Que vai preso quem não conclui o ensino fundamental ou quem não tem dinheiro? Cuidado com leitura de estatística! Faça o recorte não pela escolarização e você vai notar que existe sim uma forma de prisão que é feita para aqueles que têm menos recursos, não porque eles têm menos escola, mas porque têm menos maneiras para utilizar das ferramentas que podem ser usadas para não ficar preso.

CRN – Mas, mesmo assim, a educação não deveria chegar até eles?

Cortella – Sim, mas a educação não muda nada nisto que você me descreveu. Porque você tem sociedades em o que vale é a distribuição de renda, não a distribuição da escolaridade. Por exemplo, de nada adianta você ter um grupo de pessoas que, formalmente, tenham completado a educação básica. O que vai fazer com que estas pessoas possam escapar das armadilhas do dia a dia é a distribuição de renda e não de escolarização. Se você conectar uma coisa à outra, cai em outra armadilha que é supor que a pobreza impulsiona a delinquência. O que não é verdade.

Boa parte dos canalhas nacionais têm alto nível de escolaridade. Você está pegando no nível dos que estão na penitenciária. Se escolaridade fosse indicador de possibilidade de não cometer delito, nós não teríamos uma série de coisas acontecendo. O que a escolaridade indica, neste caso que você coloca, é que a criminalidade está ligada a uma classe social que também já é vitimada pela ausência de escolaridade. Em outras palavras, se assim fosse, eu resolveria a questão da delinquência oferecendo mais escolaridade. E não é automático. Não é assim. De nada adianta eu ter alguém formado sem emprego, sem distribuição de renda.

CRN – Embora tenhamos saído dos índices de indigência quanto à escolarização, ainda temos um problema de mão de obra qualificada.

Cortella – Nós saímos da UTI e estamos entrando na enfermaria. Mas sofremos com isto em várias áreas. E não é tarefa da escola formar mão de obra.  Isso é um equívoco que nenhum país mais sério comete. Se você olhar porque a Índia tem grandes matemáticos, grandes ehttps://itforum.com.br/wp-content/uploads/2018/07/shutterstock_528397474.webpsos de física é porque simplesmente ela forma base científica sólida. Na Inglaterra e nos Estados Unidos existe avanço em relação à pesquisa porque estes países não formam para o mercado de trabalho, mas oferecem solidez que possibilita o cidadão a ir naquilo que seja mais adequado à sua formação geral.

CRN – Historicamente, o Brasil não tem alunos interessados em produção científica e exatas.

Cortella – Não. Porque esta área sempre foi mal ensinada para nós. Só um nerd iria se dedicar a fazer matemática.

CRN – O que estimularia as pessoas a estudarem esta área?

Cortella – Parte a mídia, parte a família, parte as empresas. Se uma profissão não tem charme e encanto, se o mundo adulto não encanta as crianças por ela, é muito difícil que ela vá por si mesma. Ou seja, nós que encantamos o tempo todo as pessoas com a ideia de que ela tem que ser médica, advogada….

CRN – Mas como isso muda?

Cortella – Isso muda com o fato de que o mercado está mudando aqui. E Guimarães Rosa já dizia: ?o sapo não pula por boniteza, ele pula por precisão?. A demanda do mercado leva várias empresas a fazerem parcerias com institutos de formação e assim forçando essa formação mais acelerada. E é claro que onde há demanda, há salários. Então, não se muda no automático, é um processo.

CRN ? Então é este o caminho para a iniciativa privada?

Cortella – Sim e fazer as parcerias e subsidiar estudos. No Brasil não há algo que existe em vários países, que é a presença efetiva do empresário e do acionista na vida das universidades, não só cobrando, mas financiando, fazendo doações. Se você observar, na Universidade de São Paulo (USP), que é a melhor universidade da América Latina, o número de doações que ela recebe de pessoas que já passaram pela FEA, POLI ? que hoje são empresários ? é quase nenhum.

Ou seja, não há cuidado com os centros de formação.  O que há é uma grande reclamação depois. Os caras secaram o mato e agora reclamam que alguém riscou o fósforo.

CRN – Você considera o modelo de educação atual ? turma de alunos, livro, sala de aula ? ultrapassado?

Cortella – Não é não. É um modo de fazer, mas não é o único, que vem se provando há 2,5 mil anos. A primeira plataforma digital de ensino a distancia se chama livro! E ela consegue agregar outras formas de ensino e aprendizagem. Agora, não é a escola que encontrará esta única alternativa. Inclusive porque as outras plataformas digitais ? que não o livro ? trazem um nível de superficialidade muito grande. Há muitas escolas e governos, como o dos Estados Unidos e da Inglaterra, que estão saindo do uso das plataformas digitais do dia a dia do aluno e retornando para alguns modelos que tinham eficácia maior. O livro exige maior atenção e não produz algo que é muito ruim para o estudo: a distração. Não é que as plataformas digitais não tenham o seu lugar. Mas elas não são substitutas dos modelos anteriores.

CRN – Mas este modelo, para uma criança que já foi submetida a horas de internet e TV, seria atrativo dentro de uma sala de aula?

Cortella – O que faz alguém se interessar por algo é o tema que está sendo tratado. Um jovem é capaz de ficar seis horas em pé em uma fila para comprar um ingresso para o show do Black Eyed Peas. Depois ele fica mais seis horas esperando o show começar, mesmo debaixo de chuva. Você mesma, quando era criança, com uma pazinha e um baldinho na praia, se eu te oferecesse um computador você iria querer? (a jornalista responde que ?não?)

O que isso quer dizer? Que nem tudo na vida é plugado, tem coisas que são não plugadas. Você se interessa por um conteúdo não porque ele está eletrificado ou não. Mas pela conexão que aquilo tem com a sua vida. Por isso que um professor não pode ter nem informatofobia e nem informatolatria.

Um bom exemplo de que você se interessa pelo assunto e não pela tecnologia que está lá é o caso dos restaurantes: você não vai a um restaurante que anuncia: temos os melhores micro-ondas da cidade! Você vai ao restaurante que tenha uma placa: temos forno à lenha.

CRN –  O Brasil vive ainda o dilema das faculdades, que nem sempre estão aptas a oferecer um curso de alto nível. Geralmente, nestes locais, os alunos também não estão aptos a aulas mais ?parrudas?. Há educadores que defendem estas universidades, por manterem as pessoas em contato com o estudo. O que você acha disto?

Cortella – Eu acho que estas escolas, que eu costumo chamar de ?UniEsquinas?, precisam de uma fiscalização mais séria por parte do poder público. Mas elas cumprem uma tarefa de oferecer escolarização para uma parcela da população. É preciso lembrar que não foi só a delinquência estatal que gerou essa condição no ensino superior, também foi a delinquência mercantil: ou seja, a transformação do ensino em mero negócio de grandes fundos de investimento.

Voltando à questão, com o controle do poder público, sem dúvidas, elas podem existir. E não é diferente do que acontece em outras nações. Nos Estados Unidos, você tem universidade de primeira, segunda e terceira linha e assim por diante. Só que lá o poder público controla e mais de 80% das universidades são privadas, mas com doação da comunidade para funcionar. E aqui nós temos 80% das universidades privadas sustentadas pela mensalidade do aluno.

Então, lamento. Eu não gostaria que fosse assim. Mas muita gente que hoje aponta o apagão de mão de obra qualificada não se movimentou na direção desta formação, não colocou o recurso, não defendeu governos que nela aplicassem e assim por diante.

CRN ? Em vez de ensino superior de má qualidade, não seria melhor investir em ensino médio de boa qualidade?

Cortella – Claro, é por isso que precisa das parcerias. E é por isso que precisa que haja por parte do empresariado uma atenção extrema àquilo que os governos precisam fazer e também uma capacidade contributiva, ou seja, pagamento de imposto que efetivamente vá para a área de educação. Vez ou outra, alguns empresários me perguntam em debate: professor como eu faço para melhorar a educação escolar no Brasil? Eu falo: pague imposto direito. Evite que haja dentro de sua cadeia produtiva ? não só de sua empresa ? evasão fiscal, suborno ou desvio de recurso. Quando estamos dentro de uma cadeia produtiva não adianta só sua empresa ser correta e fechar os olhos para o resto. Isto é uma tarefa.

Outra é fazer parcerias. Por exemplo, o oferecimento de bolsas. Destinação de uma parte da rentabilidade dos acionistas para financiamento e pesquisa. Como é feito nas grandes nações que, historicamente, têm uma educação escolar sólida.

CRN – Às vezes, o empresário oferece esta bolsa, treina e prepara o funcionário, e aí, outra empresa o leva embora…

Cortella – Por isso que ele tem que oferecer outros atrativos de retenção e o que leva à retenção de alguém em uma atividade não é apenas salário. Benefícios como possibilidade de ascensão na carreira, reconhecimento, o apoio e a parceria para crescer. É necessário lembrar que hoje a empresa é descartável para alguns funcionários, tal como o funcionário era descartado, até pouco tempo, para a empresa. A fidelização recíproca está sendo trazida à tona agora, mas até há pouco tempo se colocava a necessidade de fidelização por parte do empregado, mas não por parte do empregador. A frase que eu mais ouvia nas empresas até 2008: o maior ativo que nós temos são os empregados. Quando em setembro de 2008 houve a quebra na economia, a primeira coisa que aconteceu foi o facão no ativo. Não se pensou em diminuir um pouco a rentabilidade do acionista, diminuir produção ou custo.

CRN – Quando você fala isto nas empresas, qual é a recepção das pessoas quanto a estas ideias?
Cortella – Eu sou da área da filosofia e a tarefa da filosofia é perguntar sobre os porquês . Isso leva à necessidade de chamar a atenção das pessoas para evitar os cinismos nas relações. Por isso, qual é a receptividade? Quando se tem uma empresa que não quer ser cínica, ela ouve isso que eu dizia de uma maneira adequada. Isto é, ela pensa em modificar o modo de fazer, ao invés de insistir naquilo que fazia. Albert Einsten é autor de uma clássica e inteligente frase que dizia que tolo é aquele faz sempre do mesmo jeito e espera resultados diferentes. Os que não desejam nem a tolice, nem o cinismo pensam em fazer de outro modo.

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