Biotecnologia, o futuro da vida como produto
Inovação e excelência se unem para moldar os próximos passos deste mercado, que promete mudar paradigmas
Por Déborah Oliveira, Rafael Romer e Pamela Sousa
A biotecnologia, antes restrita a laboratórios e pesquisadores, agora se mistura com grandes negócios, atraindo investidores e revolucionando setores como saúde, alimentação e meio ambiente. O mercado global de biotecnologia foi avaliado em US$ 1,55 trilhão em 2023 e deve crescer a uma taxa composta anual de 13,96% até 2030, segundo dados da Grand View Research. Esse salto é impulsionado, especialmente, por avanços em engenharia genética, agricultura de precisão e inovação em alimentos de laboratório.
Mas será que estamos prontos para lidar com os dilemas éticos e a regulação necessária para uma era em que o código da vida se torna um produto? Neste especial do IT Forum, conversamos com líderes de empresas que estão na vanguarda desse movimento para entender como essas mudanças já estão impactando nosso futuro e quais desafios estão por vir.
Alimentos em laboratório
Em 2023, o consumo global de carne atingiu cerca de 360 milhões de toneladas, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês). A previsão para 2030 é de que esse número suba para aproximadamente 455 milhões de toneladas, um aumento de cerca de 27%.
Com uma população mundial atual de cerca de 8 bilhões de pessoas, prevista para chegar a 9,7 bilhões em 2025, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a busca por soluções sustentáveis na produção de alimentos se intensifica. A carne cultivada e alimentos à base de plantas surgem como uma inovação promissora, contando com o apoio da tecnologia para viabilizar seu crescimento.
No Brasil, apesar de ainda estar nos estágios iniciais da produção de carne em laboratório, há um crescente entusiasmo por parte de empresas e pesquisadores para acelerar seu desenvolvimento. Amanda Leitolis, PhD e especialista em ciência e tecnologia do The Good Food Institute (GFI), organização sem fins lucrativos que promove alternativas à base de plantas e células aos produtos de origem animal, especialmente carne, laticínios e ovos, destaca o avanço do setor no país.
“Mesmo que tenhamos começado atrás de países como Israel, Estados Unidos e Cingapura, o Brasil tem demonstrado grande interesse em carne cultivada. Atualmente, contamos com cinco empresas no setor, incluindo grandes nomes como JBS e BRF, além de startups como Mundo Biotech e Cellva“, afirma.
Amanda Leitolis, Phd e especialista em Ciência e Tecnologia do GFI (Imagem: Divulgação)
De acordo com Amanda, o Brasil soma 27 grupos de pesquisa ativos em todas as regiões, com as universidades federais à frente dessas iniciativas. “Embora pareça um número modesto, é um grande avanço em relação aos dez grupos do ano passado”, explica.
Globalmente, o GFI atua como um catalisador no ecossistema de carne cultivada, dividindo suas atividades em três áreas: ciência e tecnologia, políticas públicas e engajamento corporativo. Amanda explica que a organização não só conduz estudos próprios e publicações, mas também colabora com outros pesquisadores para financiar e direcionar investigações prioritárias.
Nessa arena está a JBS, uma das maiores empresas de alimentos. A companhia recentemente deu passos significativos para se tornar líder na biotecnologia de alimentos. A empresa iniciou a construção do JBS Biotech Innovation Center, o primeiro centro de pesquisa em proteína cultivada do país, localizado no Sapiens Parque, em Florianópolis (SC). Com um investimento de aproximadamente US$ 62 milhões, o centro deve ser inaugurado no final de 2024 e contará com laboratórios avançados e uma planta-piloto, empregando uma equipe científica de 25 pós-doutores e especialistas.
A colaboração entre a JBS e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) é outro marco importante. A parceria visa criar uma rede de colaboração entre instituições públicas e privadas, fortalecendo a inovação e a tecnologia nacionais no setor. Segundo a empresa, o centro será liderado pelos doutores Luismar Marques Porto e Fernanda Vieira Berti, e promete acelerar a comercialização da proteína cultivada.
Além das iniciativas locais, a JBS está expandindo sua atuação na Europa, com a aquisição da BioTech Foods, empresa espanhola que opera uma planta-piloto em San Sebastián.
Desafio da democratização
Amanda ressalta que, apesar dos avanços, ainda há muitos desafios a serem superados na produção de carne cultivada. “Não existe uma solução única para todos os problemas. A tecnologia envolve aprimoramento do cultivo celular, desenvolvimento de meios de cultivo, uso de biorreatores e bioprocessos, além de inovação em biomateriais e nanotecnologia”, explica.
A inteligência artificial (IA) também desempenha um papel crucial na otimização dos processos, desde a modelagem computacional até a nutrição celular. “Estamos utilizando IA para otimizar a modelagem computacional e entender melhor os requisitos das células, como o que uma célula de frango precisa para se nutrir adequadamente”, explica. “A IA é uma ferramenta essencial para aprimorar o cultivo celular em escala e desenvolver meios de cultivo mais eficientes”, completa.
Cynthia Pereira, diretora de P&D da NotCo Brasil (Imagem: Divulgação)
Um caminho promissor para a evolução da carne cultivada é aproveitar os aprendizados obtidos ao longo do processo de desenvolvimento de alimentos à base de plantas. A NotCo foi uma das pioneiras desse setor e se destaca ao utilizar tecnologia de ponta para criar produtos à base de plantas que replicam com precisão a experiência dos alimentos de origem animal.
Cynthia Pereira, diretora de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) da NotCo Brasil, compartilha os desafios e os avanços da empresa no setor. Segundo ela, o desenvolvimento de alimentos à base de plantas na NotCo tem como grande aliada a tecnologia.
Sobre o uso de IA, a NotCo utiliza a tecnologia para aprimorar seus processos de pesquisa e desenvolvimento. “Nosso algoritmo de IA, Giuseppe, é fundamental para analisar dados de artigos científicos e contribuir para o desenvolvimento de novas fórmulas. Isso nos permite atualizar e implementar melhorias de maneira mais rápida e eficiente”, explica ela. A IA também ajuda a empresa a explorar o potencial de ingredientes naturais, como a proteína de ervilha, para resolver problemas como a redução de sal e açúcar.
Data center em uma caixa de sapatos
Sejam eles vídeos, imagens, mensagens de texto ou até documentos corporativos, todos os dias a humanidade gera uma enorme quantidade de dados digitais. Estimativas da empresa global de pesquisa IDC apontam que o montante global de dados deve exceder 175 zettabytes no próximo ano. Um zettabyte equivale a 1 trilhão de gigabytes. Em 2018, esse volume era de 33 zettabytes.
Este vasto amontoado de dados precisa ser armazenado em algum lugar. Boa parte deles vai para a “nuvem”, uma coleção de centros de dados espalhados pelo planeta que guardam informações digitais em modais como as famosas “fitas magnéticas”. Mas, ainda que nossa capacidade de armazenar dados cresça ano a ano, o cenário é desafiador.
Data centers, por exemplo, ainda estão longe de se tornarem uma solução plenamente sustentável. Estimativas da International Energy Agency (IEA) apontam que a energia consumida para essas estruturas deve saltar de 460 TWh em 2022 para mais de 1.000 TWh até 2026. As fitas magnéticas que os compõem não ficam para trás: após algumas décadas, se desgastam e sua capacidade de armazenamento se esvai.
A resposta para esse dilema pode estar mais próxima do que se imagina. Ela pode estar, na verdade, dentro de cada um de nós: no DNA. Isso porque essas moléculas orgânicas, que guardam o material genético de espécies vivas de todo o planeta, podem servir como veículo de armazenamento de dados digitais — e o Brasil já desempenha um papel na evolução desta tecnologia.
A ideia já é considerada desde a década de 1950, quando Richard Feynman, físico teórico estadunidense, descreveu essa possibilidade. Nos anos 80, uma imagem foi registrada dentro de uma sequência de DNA pela primeira vez por pesquisadores de Harvard. No Brasil, os experimentos neste campo ocorrem no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), uma das maiores e mais antigas instituições de pesquisa científica do país, sediada na Universidade de São Paulo (USP).
Bruno Marinaro Verona, pesquisador do Laboratório de Micromanufatura do IPT (Imagem: Divulgação)
Conforme explica Bruno Marinaro Verona, pesquisador do Laboratório de Micromanufatura do IPT e coordenador do projeto Prometheus, o DNA é composto pelas chamadas “bases nitrogenadas”, que, na natureza, são utilizadas para armazenar o código genético de seres vivos. O conceito é mimetizar esse processo para guardar dados digitais com as bases nitrogenadas, representando o código binário da computação tradicional.
O processo consiste em dois passos: primeiro, a “sintetização” das bases nitrogenadas, que assumem a forma dos zeros e uns dos dados digitais no DNA. O segundo é a leitura dos dados inscritos, que é feita por meio do conhecido “sequenciamento” genético. No futuro, a expectativa é que poderemos armazenar o equivalente a um exabyte de dados — ou um bilhão de gigabytes — em aproximadamente cinco gramas de material. “Conseguiríamos colocar um data center inteiro dentro de uma caixa de sapatos”, disse o pesquisador ao IT Forum. “É aí que queremos chegar.”
Além da escala reduzida, há outras vantagens. O processo é muito mais sustentável. Em média, o consumo de água e energia para armazenar informações desta forma é de 2,5 a 3 vezes menor do que em um data center. Além disso, o DNA tem uma vida útil incomparavelmente maior. Enquanto data centers precisam realizar o processo de “refresh”, em média, a cada cinco anos, genes são capazes de aumentar a retenção destes dados em até mil vezes.
Uma das empresas que compraram a ideia foi a Lenovo. A gigante de tecnologia mantém uma equipe global de pesquisa e desenvolvimento (P&D) que soma 15 mil profissionais. No Brasil, o time é liderado por Hildebrando Lima.
Hildebrando Lima, líder da equipe de P&D da Lenovo Brasil (Imagem: Divulgação)
Uma das divisões da companhia, a Infrastructure Solutions Group (ISG), atua diretamente no segmento de armazenamento e motivou o apoio ao projeto desenvolvido no IPT. “Ainda há desafios de ganhos de escala, mas a viabilidade já foi comprovada. Conseguimos fazer do começo ao fim”, contou Lima.
Na prática, a tecnologia já poderia ser produtizada para armazenar pequenas quantidades de informação em “cold storage“. Outra aplicação seria a cibersegurança. “É possível usar propriedades biológicas para adicionar novas camadas de proteção. Se alguém quiser acessar uma informação, precisará desembaralhar não só no nível da TI, mas também da biologia molecular”, disse Verona, do IPT.
Em março de 2024, o estudo encerrou sua primeira fase, e o saldo foi positivo. Foram sete patentes requisitadas, incluindo de hardware e software, além da comprovação da tese original. “Construímos nosso primeiro sintetizador de DNA e, agora, precisamos continuar, porque o desafio está em aberto”, disse o pesquisador.
O próximo passo, segundo Verona, está em como paralelizar massivamente a síntese do DNA para ganhar escala. Isso seria fundamental para aplicações ligadas à área de TI, que lidam com um volume grande de informação. “Não adianta conseguirmos escrever um arquivo de texto por dia”, brincou.
Além disso, é preciso que a indústria entre em consenso em relação aos padrões da tecnologia de armazenamento, já que, ao redor do mundo, diferentes projetos têm assumido diferentes padrões. “Não podemos repetir aquela história de VHS vs. Betamax“, relembrou o diretor de P&D da Lenovo. “Precisamos criar padrões na parte de invólucros, do veículo e da codificação.” “O coração está feito”, finaliza Verona. “Agora vamos pegar isso e transformar em produto.”
Entre células e algoritmos
A biotecnologia farmacêutica está em um momento decisivo, como uma partida de xadrez em que cada jogada molda o futuro de uma indústria cujo tabuleiro se expande além dos limites conhecidos.
Se, no passado, o desenvolvimento de medicamentos seguia um caminho linear — da descoberta de uma molécula à sua aprovação —, hoje ele se assemelha mais a uma série de movimentos simultâneos que se desenrolam em várias direções ao mesmo tempo. A aposta da indústria está na combinação de células e algoritmos, em que os avanços em biotecnologia, biologia sintética e inteligência artificial se entrelaçam para redefinir o que entendemos por saúde e doença.
Nesse sentido, Adalberto Pessoa Júnior, professor na Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, destaca que a biotecnologia farmacêutica está vivendo um período de crescimento exponencial. “O que antes era considerado futuro, hoje é presente”, observa ele.
Ele destaca que, ao contrário dos medicamentos químicos tradicionais, que afetam o corpo inteiro, os biofármacos são projetados para atuar diretamente no alvo. “Com os medicamentos obtidos por biotecnologia, você aplica uma dose muito menor e ela vai direto ao alvo”, explica. Isso significa tratamentos mais eficazes e com menos efeitos colaterais, uma mudança significativa em relação aos medicamentos convencionais.
Adalberto Pessoa Júnior, professor na FCF da USP (Imagem: Divulgação)
No entanto, essa evolução não vem sem desafios. A biotecnologia farmacêutica enfrenta altos custos, uma realidade que Pessoa Júnior atribui à complexidade do desenvolvimento e à necessidade de tecnologias avançadas. “A biotecnologia é cara porque exige equipamentos sofisticados e uma equipe altamente especializada”, observa. A produção de biofármacos envolve processos complexos que são caros e ainda estão em fase de desenvolvimento. “O preço vai cair à medida que a tecnologia se torne mais acessível e as patentes expirem”, antecipa.
Uma das áreas mais promissoras da biotecnologia farmacêutica é a medicina personalizada. Pessoa Júnior descreve uma abordagem emergente que promete revolucionar o tratamento de doenças.
“A biotecnologia está avançando tanto que agora podemos desenvolver medicamentos personalizados para cada paciente”, diz ele. Isso é feito por meio da análise do DNA do paciente para criar tratamentos específicos. “Com essa tecnologia, o medicamento é formulado para atacar as células doentes com base no perfil genético do paciente, resultando em menos efeitos colaterais”, detalha.
Um exemplo concreto do avanço da medicina personalizada é o trabalho da AstraZeneca. A farmacêutica anglo-sueca, que ganhou destaque global com a vacina contra a Covid-19, tem investido significativamente em genômica para transformar suas estratégias de desenvolvimento de medicamentos.
Em 2020, a AstraZeneca utilizou petabytes de dados de sequenciamento genômico para orientar suas pesquisas e acelerar a criação de novos tratamentos. Iavé Petrovski, vice-presidente e diretor de análise de genoma e informática no Centro de Pesquisa Genômica da AstraZeneca, conta que a empresa forneceu informações genéticas para mais de 40 projetos de descoberta de medicamentos em 2020 com esses recursos.
No panorama da medicina personalizada e da biotecnologia, a AstraZeneca vem apostando pesado na combinação de dados genômicos com a inteligência artificial para redefinir o tratamento de doenças complexas.
Microdispositivo do projeto Prometheus (Imagem: Divulgação)
Mas a AstraZeneca quer ir além. No último ano, a farmacêutica investiu na Absci, empresa norte-americana que utiliza algoritmos de IA para buscar novos medicamentos. Segundo o executivo, a aposta é ousada: substituir a quimioterapia como a conhecemos, desenvolvendo novas formas de tratar o câncer.
Para isso, todos os dados coletados em seus experimentos são alimentados na IA para projetar novos resultados, acelerando em anos o desenvolvimento de medicamentos. A revista Nature’s Journey estima que, com o nível atual de IA, o tempo médio de desenvolvimento de novos medicamentos contra o câncer pode ser reduzido em 50%. Essa aceleração não é apenas uma questão de eficiência, mas pode significar a diferença entre a vida e a morte para milhões de pacientes.
Mas o futuro aponta para além disso. Especialistas do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Google AI Quantum and Drug Development e da própria Nature acreditam que o verdadeiro salto na biotecnologia será dado quando a computação quântica alcançar um estágio mais avançado. Com esse poder de processamento, seria possível avançar em uma década o que levaria um século pelos métodos tradicionais.
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