“Black Mirror” explica ludicamente os riscos da inteligência artificial
Série mantém proposta de mostrar que problemas ligados a tecnologias não costumam vir delas, mas de maus usos que pessoas fazem desses recursos
Em uma sociedade polarizada pelo poder descontrolado dos algoritmos das redes sociais, cresce o debate se a inteligência artificial vai exterminar ou salvar a humanidade. Como costuma acontecer com esses extremismos, a verdade provavelmente fica em algum lugar no meio do caminho. Agora a sexta temporada da série “Black Mirror”, que estreou na Netflix na última quinta (15), surge com uma explicação lúdica de como essa tecnologia pode ser incrível ou devastadora, dependendo apenas de como será usada.
A icônica série, criada em 2011 pelo britânico Charlie Brooker, é conhecida pelas suas perturbadoras críticas ao mau uso de tecnologias. Sem correr risco de “dar spoiler”, o primeiro episódio da nova temporada (“A Joan É Péssima”) concentra-se na inteligência artificial generativa, mas guarda espaço para apontar outros abusos do mundo digital pela sociedade. Sobra até para a própria Netflix, a vilã do episódio!
Como fica claro na história, o poder da inteligência artificial cresce de maneira que chega a ser assustador, alimentando as teorias pessimistas ao redor dela. Se até especialistas se pegam questionando como essas plataformas estão “aprendendo”, para uma pessoa comum isso é praticamente incompreensível, algo ainda no campo da ficção científica.
Mas é real e está a nossa volta, começando pelos nossos smartphones.
Veja esse artigo em vídeo:
Como acontece em tantos episódios de “Black Mirror”, algo dá muito errado. E a culpa não é do digital, mas de como ele é usado por seres humanos movidos por sentimentos ou interesses condenáveis. A lição é que, quanto mais poderosa for a tecnologia, mais incríveis serão os benefícios que ele pode trazer, mas também maiores os riscos associados à sua desvirtuação.
É nesse ponto que estamos com a inteligência artificial. Mas ela não estraga a vida da protagonista do episódio sozinha: tem a “ajuda” de celulares (que estão captando continuamente o que dizemos e fazemos), dos algoritmos das plataformas de streaming (que nos dizem o que assistir), da “ditadura das curtidas”, do sucesso de discursos de ódio e até de instalarmos aplicativos sem lermos seus termos de uso.
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A indústria de tecnologia costumava ser regida pela “Lei de Moore”, uma referência a Gordon Moore, um dos fundadores da Intel. Em um artigo em 1965, ele previu que a quantidade de circuitos em chips dobraria a cada 18 meses, pelo mesmo custo. Em 1975, reviu sua previsão para 12 meses. Hoje, o poder da inteligência artificial –que é software, mas depende de um processamento gigantesco– dobra a cada três meses.
O “problema” é que nossa capacidade humana não cresce no mesmo ritmo. E quando não conseguimos acompanhar uma evolução, ela pode nos atropelar. Essa é a gênese de muitos desses problemas, pois tanto poder à disposição pode fazer com que as pessoas deixem cuidados de lado e até passem por cima de limites morais.
É como diz o ditado: “quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza!”
Faça a coisa certa
Na quarta, participei do AI Forum 2023, promovido pela IBM e pela MIT Sloan Review Brasil. As palestras demonstraram o caminho desse avanço da inteligência artificial e de como ela está se tornando uma ferramenta essencial para empresas de qualquer setor.
De fato, com tantos recursos incríveis que novas plataformas movidas pela IA oferecem aos negócios, fica cada vez mais difícil para uma empresa se manter relevante no mercado sem usar essa tecnologia. É como procurar emprego hoje sem saber usar a Internet ou um smartphone. Por mais experiente e qualificado em outras áreas que se seja, não haveria chance de ser contratado, porque esses pontos fortes seriam facilmente suplantados por outros candidatos que dominassem esses recursos.
Um estudo recém-divulgado pela IBM mostra que, se em 2016 58% dos executivos das empresas estavam familiarizados com a IA tradicional, agora em 2023 83% deles conhecem a IA generativa. Além disso, cerca de dois terços se sentem pressionados a acelerar os investimentos na área, que devem quadruplicar em até três anos.
A mesma pesquisa aponta que o principal fator que atravanca essas decisões é a falta de confiança na tecnologia, especialmente em aspectos de cibersegurança, privacidade e precisão. Outros problemas levantados foram a dificuldade de as decisões tomadas pela IA generativa serem facilmente explicadas, a falta de garantia de segurança e ética, a possibilidade de a tecnologia propagar preconceitos existentes e a falta de confiança nas respostas fornecidas pela IA generativa.
Conversei no evento com Marcela Vairo, diretora de Automação, Dados e IA da IBM (a íntegra da entrevista pode ser vista no vídeo abaixo). Para ela, três premissas devem ser consideradas para que a inteligência artificial nos ajude efetivamente, resolvendo essas preocupações.
A primeira delas é que as aplicações movidas por IA devem ser construídas para tornar as pessoas mais inteligentes e produtivas, e não para substituí-las. Deve existir também um grande cuidado e respeito com os dados dos clientes, que pertencem apenas a eles e não podem ser compartilhados em outra plataforma ou com outros clientes. E por fim, as aplicações devem ser transparentes, para que as pessoas entendam por que elas estão tomando uma determinada decisão e de onde ela veio, o que também ajuda a combater os possíveis vieses que a IA desenvolva.
O que precisamos entender é que essa corrida tecnológica está acontecendo! Não sejamos inocentes em achar que ela será interrompida pelo medo do desconhecido. Os responsáveis por esse desenvolvimento devem incluir travas para que seus sistemas não saiam do controle, garantindo essas premissas.
O que nos leva de volta a “Black Mirror”: tampouco podemos ser inocentes em achar que todos os executivos da indústria serão éticos e preocupados em fazer a coisa certa. É por isso que a inteligência artificial precisa ser regulamentada urgentemente, para pelo menos termos a tranquilidade de continuar usufruindo de seus benefícios incríveis sem o risco de sermos dominados pela máquina.
E no final, sempre temos que ter uma tomada para puxar e desligar a coisa toda se ela sair completamente dos trilhos.
Íntegra de entrevista com Marcela Vairo (IBM):