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O descompasso da educação

Há um descompasso entre a educação e o mundo do trabalho. E não é de hoje. A conclusão é dada pela voz calma do professor José Moran, coautor do livro “Metodologias Ativas para uma Educação Inovadora: Uma Abordagem Teórico-Prática”. À medida que habilidades digitais são cobradas como condicionais para entrar em um novo universo de profissões, a educação formal deixa lacunas. Segundo uma pesquisa da Unicef, muitos jovens sentem que a educação atual não consegue lhes preparar para as habilidades necessárias para conseguir um emprego. Feita em 2020 com 40 mil participantes em mais de 150 países, a pesquisa indicou ainda que 39% dos entrevistados afirmam que os empregos que procuram não estão disponíveis em suas comunidades. “A educação precisa mudar profundamente”, alertou Moran. “A educação tem de estar atenta a este mundo que não é nem do século 21. Um quinto dele já passou”, sentenciou. Na visão do professor, pesquisador e mentor de projetos de transformação na Educação, a educação ainda está atrelada a modelos que faziam sentido no passado, mas tem se revelado frustrante diante da complexidade dos dias atuais. “O mundo mudou. É um mundo híbrido que exige competências amplas”, acrescentou Moran.

O descompasso entre a educação e o mercado de trabalho também preocupa lideranças no mundo todo. De acordo com a “24ª Pesquisa Anual Global de CEOs” da PwC, realizada em 2021, 74% dos CEOs disseram estar preocupados em encontrar as habilidades certas para expandir seus negócios. Tal levantamento esbarra em outra conclusão do estudo da Unicef. Ainda são poucos os jovens cujas pretensões parecem buscar um futuro habilitado para o digital. Dos entrevistados, 22% afirmam querer desenvolver capacidades de liderança; 19% buscam o pensamento analítico e inovação; e apenas 16% buscam habilidades de processamento de informações e dados. Ao mesmo tempo, o relatório “Future of Jobs 2020”, do Fórum Econômico Mundial, aponta que metade de todos os trabalhadores do mundo vai precisar de requalificação até 2025.

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Especialista em Psicopedagogia e Neuropsicologia, Adriana Foz, também acredita que a educação precisa passar por uma revolução. A aceleração exponencial da tecnologia e as mudanças de comportamento que ela provoca dão apenas alguns sinais de que é preciso novas abordagens. “Se você tem o [buscador] Google, você não vai conseguir convencer uma criança de que ela precisa decorar datas históricas, pois, em dois segundos, ela tem acesso a isso na palma da mão”, exemplifica Adriana.

Pesquisadora do Laboratório de Neurociências Clínicas, na UNIFESP, (LINC) e autora dos livros “A cura do cérebro” e “Frustração: Como treinar suas competências emocionais para enfrentar os desafios da vida pessoal e profissional”, Adriana defende, entretanto, que não é apenas o domínio do digital em nossas vidas que exige um novo paradigma para a educação. A neurociência evoluiu também para entender melhor como nosso cérebro aprende e funciona, ressalta. “Este fato traz informações que não podemos negligenciar. Nosso cérebro é o mesmo do Homo Sapiens, só que as funções que vão sendo requisitadas e sinapses que vão sendo criadas, estas mudam o tempo todo”, explica ao falar sobre os campos dedicados no cérebro para a visão, fala, audição e cognição.

“Nós não temos uma área [no cérebro] para ler e escrever. No começo da humanidade, ninguém poderia fazer uma inferência de que nós chegaríamos ao fruto da leitura e escrita. Isso foi resultado da plasticidade cerebral em virtude da necessidade do ser humano de registrar”, diz Adriana. Desta forma, Adriana compara as habilidades de leitura e escrita com aquelas que precisamos desenvolver para a linguagem informática. “Não viemos com áreas para esse processamento. Só que o ser humano foi criando necessidades e o cérebro foi se adaptando […] Isso mostra que teremos um cérebro diferente com o advento do digital e com toda essa velocidade que ele impõe”.

Adriana defende que desde a educação básica é preciso trabalhar as competências socioemocionais ou as chamadas soft skills. “Por muito tempo se entendeu que matemática e português eram o carro-chefe”, diz Adriana sobre a Base Nacional Comum Curricular. “Ainda são, mas as habilidades socioemocionais, que agora fazem parte do BNCC, foram sendo gestadas com o tempo, quando já era percebido que era preciso um currículo mais cognitivo”. Em sua visão, os indivíduos que conseguirem desenvolver habilidades socioemocionais vão ter muito mais condições de lidarem com um mercado de trabalho em transformação.

Aprender por desafios

Nos últimos dez anos, a FIAP (Faculdade de Informática e Administração Paulista) têm orientado a sua metodologia de ensino para uma que se aproxime das necessidades sempre mutáveis do mercado. Essa disposição para ouvir o que as empresas demandam coloca a faculdade, na avaliação de Wagner Sanchez, Pró-Reitor do Centro Universitário FIAP, em uma realidade mais palatável para alunos da graduação estarem preparados. “Temos de ensinar nossos alunos para a vida. Conseguimos extrair do mercado aquilo que ele está precisando, que vai desde soft skills a hard skills”, sinaliza Sanchez.

Resultado dessa proposta implica uma grade curricular que é revista com frequência. O grande diferencial, entretanto, diz respeito a uma metodologia cujo aprendizado é posto em prática em desafios propostos, em conjunto, com empresas parceiras. Todos os anos, no início do ano letivo, a FIAP lança um grande desafio corporativo, chamado de Challenge by FIAP, para cada turma da graduação. O desafio pode ser desde o desenvolvimento de um aplicativo, de uma campanha de marketing digital ou de um robô, entre outros exemplos. “Os parceiros trazem um desafio real para que possam implementar o que os alunos viram em sala de aula de uma forma concreta”, explica Sanchez.

Entre as cerca de 500 empresas parceiras da FIAP estão gigantes em seus setores, como IBM, Microsoft, Sanofi, Bosch, Embraer e Mapfre. Esta última já acompanhou cinco desafios dos alunos de graduação, com iniciativas que beneficiaram diferentes áreas da empresa, de seguro de automóvel a serviços gerais. Para a Mapfre, assim como outras empresas parceiras, a aproximação com a FIAP é uma forma de conhecer jovens talentos, mas também de provocar inquietações no próprio quadro de colaboradores. “Toda a empresa é atravessada pela iniciativa”, diz Flávia Varga, Head de Inovação Mapfre. “O mais rico é a gente aprender com os alunos, trazer esse oxigênio para os nossos executivos que, normalmente, são de um ambiente mais tradicional em seguros”, acrescenta. A oxigenação, a qual Flávia se refere, é uma consequência natural das mentorias que executivos precisam se comprometer ao participar dos Challenges. “Os executivos se envolvem e se engajam”, diz Flávia.

Para Sanchez, da FIAP, a metodologia por desafios e projetos também consegue trabalhar as habilidades socioemocionais. “É muito mais que técnico, eu trabalho resolução de problemas, socialização, liderança, cumprimentos de prazos”, conta. Apesar de não revelar números, o diretor acadêmico indica que a alta empregabilidade dos alunos é um indicativo de que o modelo tem se mostrado efetivo ao que se propõe. “Mais de 90% estão empregados”, diz.

Educar para lidar com o complexo

Para dar conta de uma formação alinhada com os desafios da transformação digital, iniciativas como a SoulCode Academy e École 42 surgem como alternativas interessantes – tanto para os alunos quanto para as empresas. O público das chamadas edtechs inclui desde jovens que saíram do Ensino Médio e já completaram 18 anos, como aqueles que também passaram por uma graduação ou ainda aqueles que buscam uma transição de carreira.

Mesmo antes de inaugurar sua operação em São Paulo, em janeiro de 2020, a École 42, escola de programação de origem francesa, chamou a atenção por sua metodologia de ensino e também por não cobrar nenhum valor de seus alunos. A unidade de São Paulo (há outra no Rio de Janeiro) foi trazida pelos sócios, a publicitária Karen Kanann e Guilherme Décourt, ex-partner da Monashees Capital. O programa da 42 pode durar até três anos, mas é possível formar alunos em até 13 meses, explica Karen. Na escola, o ensino da linguagem de programação pode ser até o carro-chefe, mas segundo Karen, o que se busca é formar human coders, o que é bem mais complexo.

“Human coders são engenheiros e engenheiras de software que conseguem resolver problemas complexos de forma autônoma, de maneira criativa e colaborativa”, detalha. “Quando falam que existe uma demanda enorme para profissionais de tecnologia, eu acredito que existe uma demanda não só para programadores e desenvolvedores, mas para pessoas que tenham a capacidade de resolver problemas complexos, trabalhar no coletivo e entender a sociedade em uma visão mais sistêmica”, reflete Karen. Para fazer isso, a 42 combina competências cognitivas e socioemocionais, atreladas ao ensino de programação. Sob a visão de uma escola ou professores tradicionais, a École 42 daria, no mínimo, um nó na cabeça. Isso porque no modelo de ensino não há professores, grade de disciplinas, horários fixos, tampouco notas. Há sim uma equipe pedagógica que atua na rede 42, mas a grande virada é o ensino de programação baseado em gamificação. Os alunos iniciam seu primeiro projeto no nível 0 e recebem um certificado de conclusão ao atingirem o nível 21, o que costuma levar cerca de três anos. Para subir de nível, é preciso validar projetos.

Sinal de que o avanço tecnológico tem feito as pessoas reverem suas carreiras é o fato de que a média de idade dos alunos da 42 – atualmente são 300 deles – possuem 29 anos. De toda a base, 65% nunca programou. Há também uma representatividade expressiva, ressalta Karen – 25% dos alunos são mulheres e 40% deles são de famílias com baixa renda. “O resultado dessa diversidade não foi um esforço de atração e sim uma quebra de barreira”, diz a sócia da 42. Para os alunos de baixa renda, a escola ainda oferece uma bolsa-auxílio até o aluno conseguir um trabalho remunerado. “Para algumas pessoas o gratuito ainda é caro. Então, a pessoa pode aplicar [para a bolsa] e durante 13 meses ela recebe o auxílio”, explica Karen.

A diversidade também é representativa na SoulCode Academy, edtech lançada em 2020, com 70% dos alunos sendo mulheres e 43% dos estudantes sendo negros ou pardos. “O mundo da programação é um mundo muito pouco diverso. É um pilar que a gente tem de trazer para este universo”, destaca Fabricio Cardoso, cofundador e diretor-geral da SoulCode Academy. Para Cardoso, uma revolução no Ensino não se desassocia da obrigatoriedade do Estado e da formação de políticas públicas, mas ele vê a importância que o ESG (sigla para Environmental Social e Governance) tem ganhado como um sinal da responsabilidade das empresas pela atualização de seus funcionários.

“O poder de decisão das empresas neste movimento é muito importante”, reforça. “A SoulCode nasceu com o propósito de trabalhar quatro pilares em tudo que a gente faz, que é o impacto social, a inclusão social, diversidade e empregabilidade. A única forma de transformar isso é trazer o maior número de pessoas para dentro desse universo”, complementa. Com duração de 16 semanas, os cursos ao vivo e on-line de Web full stack e Dev Front End Mobile oferecidos pela SoulCode são gratuitos aos alunos e não demandam conhecimento prévio em programação. “Eles absorvem programação na prática. Todo final de módulo, temos um mini projeto, onde os alunos passam três dias programando”, conta Cardoso. Os projetos também são conectados com a realidade dos negócios de empresas parceiras e se propõem a resolver uma demanda concreta vivenciada no mundo corporativo. “Isso faz com que a transação desse aluno para o início de carreira seja muito mais suave”, destaca o diretor da SoulCode.

Leia também: A melhor maneira para se preparar para o futuro, segundo Amy Webb

Espelho da educação

Na equação para resolver o descompasso da educação há, lembra Adriana Foz, um protagonismo dos professores que precisam também receber uma atualização de olho no futuro. Para a pesquisadora, é prioritário que se desenvolvam as competências socioemocionais dos professores. “É muito claro que se o professor não reconhece em si essas habilidades, ele não consegue transmitir. Para falar das competências do século 21, a gente tem de inevitavelmente falar da formação do professor, pois nele é onde a panela está cozinhando este caldo para que as crianças possam aprender melhor e com mais eficiência”, argumenta.

O pesquisador e professor José Moran concorda. “Os professores precisam de uma formação humano-tecnologia. Trabalhando de forma integrada”, indica. Na visão de Moran, uma educação orientada para o futuro precisa combinar três pilares. No caso da graduação, o currículo precisa ser revisto para um que possa ser mais personalizado de acordo com o interesse do aluno. Ao mesmo tempo, busca-se uma aprendizagem compartilhada e mais próxima de mentores que vivenciam o mercado de trabalho.

Projetando o futuro do trabalho e das competências que serão exigidas, Karen Kanaan, da École 42, também defende que o grande diferencial serão as competências humanas. “A capacidade de pensar de forma criativa. Porque o que a máquina pode substituir, ela já está fazendo. Então, quando olharmos para o profissional do século 21, o que faz essa pessoa ser bem sucedida é ela conseguir lidar com todas essas competências”, afirma.

Adriana também chama atenção para a necessidade de uma educação baseada em ética. “Ela vai nos afetar muito nas tomadas de decisão. Habilidades como empatia, perseverança e criatividade”, diz a neuropsicóloga. Há outro ponto que Adriana também chama a atenção para ser o diferencial no futuro: o foco. Em um mundo onde a automação será onipresente e o excesso de informação e possibilidades geram ruído e cansaço, trabalhar o foco será fundamental.

 

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