‘Como não surtar?’: mulheres compartilham a pressão e os percalços de ingressar na área de tecnologia
Em Recife, evento da Laboratória reúne mulheres que falam dos altos e baixos da mudança para a tecnologia, e do impacto na vida familiar
A luz do auditório iluminava o rosto de mulheres ansiosas por partilhar e aprender. No palco, Erika Campos, líder de design e inovação; Iana Rodrigues, graduada da Laboratória e analista de tecnologia júnior no Bradesco e Amanda Silva, pesquisadora em Inteligência Artificial (IA) no hospital Albert Einstein, participaram de painel no Código M, em Recife*, evento promovido pela Laboratória – organização que há uma década se dedica a formar mulheres para o mercado de tecnologia. O tema da vez era um chamado direto, quase um desafio: “o mundo tech é pra você?”.
Entre o público, Danielle Silva, 34 anos, ouvia as palestrantes. Pesquisadora, tutora do CESAR School e mãe. Danielle compartilha uma história comum a muitas ali presentes: a reviravolta profissional ao abandonar uma carreira estável, apostar na tecnologia e, no processo, lidar com a maternidade e as demandas que a permeiam. “Tinha uma carreira consolidada como chefe de cozinha. Trabalhava sem parar e, quando me vi em meio a uma separação, o pouco tempo que tinha com meu filho foi desaparecendo”, conta. “Precisava escolher: fazer o que eu amava ou ter uma presença real na vida dele.”
A decisão, porém, não veio de imediato. Primeiro, pensou em estudar Direito. Depois, em um impulso, optou pela tecnologia – atraída pelas promessas de retorno rápido e pela chance de estar mais presente em casa. “Os primeiros meses foram duros. Estudava de madrugada, trabalhava em gastronomia até guardar dinheiro suficiente para me sustentar enquanto buscava um estágio”, relata. “O apoio demorou a vir, e o reconhecimento ainda mais.”
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A Laboratória, organização criada no Peru em 2014 e com presença em 11 países da América Latina, tem uma proposta simples: atrair mulheres que nunca programaram na vida e treiná-las para funções técnicas no mercado de tecnologia. O foco são aquelas que estão desempregadas, têm filhos, ou estão retornando ao mercado após anos afastadas. Em outubro, o programa chegou à marca de dez anos e formou cerca de 4 mil mulheres para a área de tecnologia.
No evento, uma voz do público ressoou uma dúvida que ecoa em muitas: “Como não surtar com tanta demanda?”. Uma das palestrantes sorriu e, sem rodeios, respondeu: “a gente surta”. Danielle escutou com atenção. Ela própria, acostumada a desafios, admite que mesmo com a mudança para a área de tecnologia, persistiu o velho ciclo de autocobrança e exaustão. “Tem toda essa obrigação: ser uma boa mãe, estudar, dar conta das notas”, descreve. Nos primeiros semestres do curso, conta que alguns colegas homens sugeriam que ela só conseguia espaço por conta de sua aparência. “Tive de provar que era capaz, que sabia o que estava fazendo. Foi só depois disso que começaram a reconhecer meu trabalho.”
Hoje, Danielle trabalha em home office de segunda a quinta, tem tempo para seu filho e redescobriu pequenos prazeres como as trilhas de moto e o fim de semana em família. Ainda assim, o alívio veio só depois de um ano e meio. “Eu faria tudo de novo, mas não foi fácil.” Ela detalha o longo caminho até que os olhares de desconfiança dessem lugar a mentorias e incentivos. “Para que confiassem em mim, tive que estudar muito, fazer cursos, mostrar interesse, ir atrás. Era algo solitário no começo.”
Danielle vê em eventos como o Código M uma oportunidade não só de troca de conhecimentos técnicos, mas de um apoio menos visível e igualmente crucial: o psicológico. “Vemos que não estamos sozinha. Meu problema é o problema de outras mulheres. Quando alguém fala sobre a própria vulnerabilidade, dá um alívio.” Segundo ela, ao participar de um espaço seguro, onde se compartilham derrotas e ansiedades, o peso se dilui. “Eu costumava achar que todas as outras mães eram impecáveis, e a pressão só aumentava.”
Na linha de frente, as organizadoras da Laboratória parecem saber disso. Iana Rodrigues, uma das palestrantes, sublinha o papel da comunidade no processo de formação profissional e pessoal das alunas: “Não se trata só de ensinar a programar, mas de construir redes. Muitas começam sozinhas e saem daqui sabendo que têm com quem contar.”
O palco foi se esvaziando, e o grupo de mulheres no evento se dissipou aos poucos. Para Danielle, o encontro deixou algo mais: um fio de esperança compartilhado, um lembrete de que há outras tentando – algumas desistindo, outras seguindo – mas todas conectadas por experiências e caminhos que se cruzam.
*A jornalista viajou a convite da empresa
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