Tributação do software e a inovação nas cidades
Por Saul Tourinho Leal, Doutor em Direito Constitucional (PUC/SP) e sócio de Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia
O Supremo Tribunal Federal encerrou o histórico julgamento que reputou inconstitucional a incidência do ICMS sobre os serviços de software. O tributo devido é o ISS e a história que ilustra essa decisão precisa ser contada.
O setor de tecnologia é feito por uma lógica global que se traduz em dois componentes: hardware e software. O primeiro, físico, tangível e corpóreo, muda de titularidade, constituindo-se sob a forma de uma mercadoria propriamente dita. Já o software, esse resulta da formatação das ideias, é a força dos dados impulsionada pela inventividade humana, aquela parcela fluida, intangível e incorpórea que não muda de titularidade, mas propicia experiências que ganham novas utilidades. O software é um serviço, de fato.
O constitucionalismo brasileiro entrega a competência tributária do hardware para os estados, com o ICMS. A do software fica com os municípios, pelo ISS. Este, expressamente regido pela Lei Complementar n. 116/2003, tem itens próprios (1.04 e 1.05) destinados aos programas de computadores, qualquer que seja a modalidade.
Com a necessidade de implementação da tecnologia 5G e a chegada da Internet das Coisas (IoT), tudo terá́ potencial de se transformar num hardware. Uma geladeira, um fogão, um carro, um relógio, todos poderão integrar essa vasta economia digital. Não faltará base tributária ao ICMS. E, quando a maré sobre, todas as jangadas se elevam.
Logo, por que constituir, em desafio à Constituição, um conceito artificial que arremessaria esse setor tão dinâmico – o dos softwares – no terreno pantanoso da guerra fiscal do ICMS, com todas as suas disputas paroquiais profundamente hostis à inovação? Por isso, é justo compreender a decisão do STF como sendo uma das mais importantes já tomadas em matéria tributária nos últimos tempos.
A Suprema Corte, depois de quase duas décadas, concluiu o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 1945 (Rel. Min. Cármen Lúcia) e da ação direta de inconstitucionalidade 5659 (Rel. Min. Dias Toffoli). Em seguida, replicou, na ADI 5958 (Rel. Min. Cármen Lúcia) e no RE nº 688.223 (Rel. Min. Luiz Fux, Tema 590), na prática, a posição anteriormente tomada pela maioria do plenário do STF. Segundo a maioria de 7 votos a 4, o tributo devido é o ISS. Ao reputar o software como serviço, a Suprema Corte abriu o caminho para o reconhecimento da força inesgotável das cidades na construção de inovação na prestação desse serviço.
O talento é um serviço. Os motores da inovação estão nas metrópoles. Florença nos deu o Renascimento. Birmingham, a Revolução Industrial. Na época de Platão e Sócrates, se debatia filosofia num mercado ateniense. No século VI a.C., Mileto, um porto dos produtores de lã no oeste da Turquia, produziu o primeiro filósofo, Tales, e o pai do planejamento urbano europeu, Hipódamo, cujas plantas em forma de grade foram modelos para os romanos e para inúmeras cidades. O primeiro teatro importante para o público de língua inglesa foi feito por James Burbage, em 1576. Londres havia crescido muito no século XVI e sua burguesia queria entretenimento.
Para Edward Glaeser, “seja nas galerias comerciais enfeitadas de Londres, seja nas favelas do Rio, seja nos arranha-céus de Hong Kong, seja nos ambientes de trabalho empoeirados de Dharavi, nossa cultura, nossa prosperidade e nossa liberdade são, em última instância, dádivas obtidas pelo fato de as pessoas viverem e pensarem em conjunto”. Para ele, “essa integração é o triunfo da cidade”[1].
Trata-se de um triunfo que também precisa ser compreendido a partir de decisões emblemáticas como essa, tomada pelo Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a natureza jurídica de serviço ao software e, por via de consequência, fazendo sobre ele incidir o ISS.
[1] Glaeser, Edward. Os centros urbanos: a maior invenção da humanidade: como as cidades nos tornam mais ricos, inteligentes, saudáveis e felizes. Trad.: Leonardo Abramowicz. Rio de Janeiro: Elsevier: 2011, p. 267.