Índia inaugura a era da política com inteligência artificial

Índia demonstrou que bom uso da IA pode fortalecer a democracia, mas seu mau uso pode colocá-la em seríssimo risco

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9:30 am - 10 de junho de 2024
O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi (direita), manteve o cargo, após as “eleições da IA” (Imagem: Governo da Índia/Creative Commons)

O resultado das eleições sempre esteve ligado ao uso das tecnologias da época. A TV era fundamental para a vitória até 2018, quando foi suplantada pelas redes sociais, críticas para definir os pleitos desde então. Mas agora elas podem perder esse posto para a inteligência artificial. E a Índia, que acabou de realizar a maior eleição do mundo, demonstrou como dominar essa tecnologia ficou essencial para os candidatos.

A IA na política não se resume a criar deep fakes para desmoralizar adversários ou se valer do ChatGPT para compor peças publicitárias, legítimas ou falsas. Como alguns candidatos indianos demonstraram, ela pode desenvolver canais inovadores e personalizados com os eleitores. E isso parece até uma boa ideia!

Se a IA fornecesse a atenção que nenhum candidato humano conseguisse dar, atendendo cada cidadão individualmente, isso poderia até fortalecer a democracia. Mas o problema do uso da IA na política é o mesmo do seu uso em qualquer atividade: abusos de seus recursos para produzir resultados imprecisos, imorais e ilegais, para assim, mais que convencer, manipular multidões e vencer uma eleição.

No final, a IA maximiza a índole de quem a usa. E infelizmente a classe política tem sido pródiga em apresentar pessoas com uma moral rasteira, dispostas a pisotear a ética e usar todos os recursos para vencer. Por isso, devemos olhar para o que aconteceu na Índia e aprender algo com aquilo. Se um bom uso da IA pode fortalecer a democracia, seu mau uso pode colocá-la em seríssimo risco!


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Por décadas, os candidatos brasileiros com mais tempo na TV iam para o segundo turno das eleições. Isso mudou em 2018, quando Geraldo Alckmin, que tinha 5 minutos e 32 segundos (quase metade do tempo total do horário eleitoral gratuito), amargou uma quarta posição, enquanto Jair Bolsonaro, com apenas 8 segundos, foi eleito presidente.

Ele ganhou porque percebeu, antes e melhor que todos, que as redes sociais haviam se tornado o canal mais eficiente de disseminação de ideias e de manipulação de mentes. E não se tratava apenas de fazer um bom uso dos recursos técnicos, mas de se alterar o jeito de se fazer a própria política, com apoio de algoritmos, fake news e discursos que parecem falar aos anseios de cada um, e não aos de toda a sociedade.

Agora a inteligência artificial promete levar a “política digital” a patamares inimagináveis. O pleito indiano foi um laboratório que deve ser observado pela população, pela mídia, por autoridades eleitorais e pelos políticos, pelo seu tamanho gigantesco e pela disseminação da tecnologia entre os cidadãos.

Leia mais: A inteligência artificial parece cada vez mais humana, mas ela não é

Em janeiro, o Fórum Econômico Mundial classificou a desinformação potencializada pela inteligência artificial como um dos maiores desafios do mundo nos próximos anos. No caso da Índia, o relatório a classificou como um risco maior que o de doenças infecciosas ou atividades econômicas ilícitas.

E de fato, muito do que se esperava de ruim se materializou nessa campanha, como uma enxurrada de fake news e de deep fakes para se atacar adversários. Mas foram vistos também o uso extensivo de hologramas de políticos (inclusive de lideranças falecidas) em comícios, sintetização de áudios e vídeos de candidatos para responder, em tempo real, a dúvidas de eleitores, e a inteligência artificial analisando quantidades colossais de dados de usuários (muitos coletados ilegalmente) para apoiar a decisão de campanhas.

A IA generativa foi amplamente usada não apenas para gerar instantaneamente as respostas e o audiovisual, mas também para fazer com que o avatar do candidato falasse na língua de cada eleitor, chamando-o pelo nome. Isso é importante em um país como a Índia, que tem 23 idiomas oficiais e mais de 400 dialetos.

Se as redes sociais foram eficientes em desinformar as pessoas, a inteligência artificial agora pode encantar (e até iludir) os eleitores.

Mentiras cada vez mais críveis

Especialistas temem que essa tecnologia convença cada vez mais as pessoas sobre os que os candidatos quiserem, pelos conteúdos personalizados e visualmente convincentes. Além disso, muita gente pode acreditar que está realmente falando com o candidato, ao invés de seu avatar.

Há ainda outro aspecto a ser considerado: por mais que os modelos de IA sejam bem treinados para sintetizar respostas às perguntas de cada eleitor individualmente, eles podem “alucinar” e repassar informações completamente erradas ao público.

No Brasil, o Congresso não ajuda ao travar projetos de lei que poderiam organizar o uso dessas tecnologias nas eleições. As autoridades eleitorais tentam, por sua vez, impedir que esses problemas aconteçam no país, definindo regras claras para a eleição municipal desse ano, incluindo contra abusos da inteligência artificial. Ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no dia 3, a ministra Cármen Lúcia fez um discurso enfatizando a responsabilidade das redes sociais no problema e o combate que fará aos usos indevidos das tecnologias digitais na desinformação.

Veja também: Redes sociais podem nos transformar em zumbis que trabalham de graça para elas

Não será uma tarefa fácil! Três dias depois, Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), Google (dono do YouTube), Microsoft, TikTok e Kwai aderiram ao Programa de Combate à Desinformação do Supremo Tribunal Federal (STF). O X, que se tornou um dos principais canais de fake news, não mandou representantes.

Ainda que a IA ofereça campanhas muito eficientes por uma fração do custo necessário para se obter os mesmos resultados de maneira convencional, esses recursos podem custar milhões de reais para um candidato. Isso desequilibra ainda mais a eleição entre os concorrentes ricos e os pobres.

A Índia demonstrou as incríveis oportunidades e os enormes problemas do uso da inteligência artificial em uma eleição. Regras são necessárias para disciplinar essa prática, mas bandidos são conhecidos por infringi-las, portanto não são suficientes.

Não podemos ser ingênuos! Esperar que as plataformas digitais tomem todos os devidos cuidados nas eleições é como esperar que a raposa cuide do galinheiro. E achar que todos os candidatos farão um bom uso desses recursos é como entregar as galinhas –ou seja, os eleitores– diretamente para a raposa.

É hora de aproveitar o que há de bom e redobrar a atenção para os usos nocivos da IA! É assim que a política será feita de agora em diante.

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