O desafio de se manter bem informado em tempos de guerra

Além de ser usada para desestabilizar infraestrutura do inimigo, guerra cibernética estreia na conquista da simpatia de pessoas ao redor do mundo

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8:30 am - 28 de fevereiro de 2022

Alguém saberia dizer o que fez Vladimir Putin invadir a Ucrânia? Para muitos, a resposta parece óbvia, e pessoas que se informam por veículos de comunicação profissionais e independentes seriam capazes de enumerar vários motivos.

Mas quem pode garantir com certeza o que se passa na cabeça do presidente russo?

Existe uma máxima que diz que, “em uma guerra, a primeira vítima é a verdade”. Afinal, todo mundo recebe necessariamente mais informações de um dos lados do conflito, e elas são filtradas, até mesmo porque nem sempre jornalistas conseguem chegar ao front para apurar melhor os fatos.

Mas o atual conflito na Ucrânia consolidou um novo tipo de guerra, que, ao lado de tanques e aviões no campo de batalha, acontece nas plataformas digitais. Ela foi criada para conquistar corações, mesmo entre os inimigos. E todos nós estamos sendo alvejados por essa artilharia.


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As razões de Putin estariam mais claras se as pessoas recorressem regularmente a um bom jornalismo para se informar, ao invés das redes sociais. Assim como os músculos, o senso crítico precisa ser continuamente exercitado, e nossa mente precisa ser alimentada com boas informações.

Mas muita gente vem sendo convencida que toda imprensa é ruim, restringindo sua “dieta informativa” ao pão mofado servido mas redes sociais, normalmente por seus políticos de estimação. E isso abre caminho para essa guerra digital, que, não por acaso, tem na Rússia seu maior expoente, que busca apoio para qualquer causa ou ideia, mesmo as mais estapafúrdias.

Por exemplo, uma parcela expressiva da sociedade americana defende as ações russas e o próprio ataque à Ucrânia, algo inimaginável poucos anos atrás. Muitos dizem até confiar mais em Putin que no próprio presidente, Joe Biden.

Misturando opinião com fatos distorcidos e mentiras deliberadas, as narrativas de apoio à Rússia se disseminam em plataformas digitais e em parte da mídia dada a teorias da conspiração, muitas “plantadas” por agentes russos. Por exemplo, desde o início da invasão, circula a ideia de que ela seria legítima porque a Otan (a aliança militar do Ocidente) teria violado acordos territoriais com a Rússia, que não existem.

Mas, como toda guerra, a que acontece nas plataformas digitais tem dois lados, e os opositores a Putin também usam esses recursos para se fortalecer, mesmo dentro da “Mãe Rússia”. O mandatário está tendo que enfrentar protestos em diversas cidades russas e em outros países, que pedem pelo fim da invasão. No caso das manifestações em seu próprio país, Putin as reprime com violência e prisões.

Ele quer agora bloquear qualquer visão contrária a sua. No sábado, o órgão de controle das comunicações da Rússia determinou que a imprensa pare de chamar o conflito de “guerra”, “invasão” ou “ofensiva”. O permitido é “operação militar especial em Donbass, destinada a manter a paz”. Também fica proibido dizer que a Rússia ataca cidades ucranianas ou qualquer referência a civis mortos. Quem não cumprir a regra, pode ter o veículo fechado.

O Kremlin também resolveu mostrar os dentes para empresas de tecnologia globais, como Google, Meta e Apple, cruciais nessa batalha. Elas devem se submeter imediatamente a uma nova legislação que dá poder ao governo russo para censurar conteúdos contrários aos seus interesses. As que não concordarem podem ser multadas, seus funcionários podem ser presos e suas operações impedidas no país.

Putin deseja ter o controle da Internet como acontece na ditadura chinesa, em que as empresas devem se submeter aos caprichos do governo, se quiserem operar no maior mercado do mundo. É por isso que lá praticamente não existe Google, Facebook, Instagram, Wikipedia e até Netflix, substituídos por produtos locais censurados.

Fica claro que a verdade está cada vez mais distante das plataformas digitais, restando ao jornalismo profissional encontrá-la onde quer que esteja.

 

“Não me morra!”

A principal ferramenta para isso é a reportagem, principalmente aquela feita no local dos fatos. Em uma guerra, tudo isso fica muito mais complicado, pois o teatro das operações é literalmente mortífero. Por isso, poucos veículos mandaram repórteres para cobrir a guerra na Ucrânia de perto, menos ainda são os que têm pessoal no país. O Estadão, por exemplo, enviou o jornalista Eduardo Gayer, que está na capital Kiev.

Esses jornalistas seguem um caminho aberto por Joel Silveira, primeiro correspondente de guerra brasileiro, enviado à Itália em 1944 para cobrir a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Antes de despachá-lo, seu patrão, Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, fez a seguinte recomendação: “O senhor vai pra guerra, seu Silveira, vai matar alemão! Só lhe peço uma coisa: não me morra, repórter é pra mandar notícia, não é pra morrer!”

É verdade! Nesses dias, vi repórteres brasileiros e de outras nacionalidades mostrando o que está acontecendo na Ucrânia e nos países vizinhos, conversando com pessoas. Apesar de se comoverem com as vítimas da guerra, mantiveram-se firmes em seu trabalho, algo que nenhum “comentarista de rede social” sequer imagina.

Aprendemos que precisamos ouvir diversos lados de um fato para nos aproximarmos da verdade. Essa premissa –uma das bases do bom jornalismo– continua valendo. Mas cada um de nós tem que tomar muito cuidado com esses tipos que crescem nos últimos anos feito ervas daninhas, que manipulam as plataformas digitais e usurpam a liberdade para destruir a própria liberdade.

Não tenho amigos ucranianos ou russos, e muito menos conheço os presidentes Volodimir Zelenski ou Vladimir Putin. Mas, nessa situação absolutamente extrema, podemos sempre nos fiar em valores inegociáveis e imutáveis, como o direito à vida.

Partindo desse princípio, não dá para justificar o ataque militar de grandes proporções que hoje destrói um país e ceifa incontáveis vidas, muito menos em nome de ameaças hipotéticas contas a segurança nacional. Assim, não há dúvida de quem está do lado errado nesse conflito, de quem é o agressor.

Essa guerra já respinga em nós e isso aumentará, não apenas pela subida dos preços de commodities, como petróleo, gás e trigo, mas também pela crescente desinformação, que carcome nossa sociedade, como cupins.

Temos que fazer a nossa parte, combatendo essa última. Não dá para continuar se informando por redes sociais. Elas devem ser usadas principalmente para amenidades e até promoções, coisas para as quais foram criadas. Se, em tempo de paz, devemos buscar a notícia entre aqueles que vão até ela com uma apuração séria e profissional, em tempos de guerra, isso pode se tornar caso de vida ou morte.

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