A tributação do software no STF

Por Saul Tourinho Leal

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por ABES
10:50 am - 17 de fevereiro de 2021

Muito em breve, o Supremo Tribunal Federal concluirá o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade n. 1945 (Rel. Min. Cármen Lúcia) e da ação direta de inconstitucionalidade n. 5659 (Rel. Min. Dias Toffoli). Ambas impuseram a cobrança de ICMS sobre o licenciamento de software.

Na ADI 1945, pediu-se a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 7.098/1998, em especial, do inciso VI do art. 2º, que faz incidir o ICMS sobre “as operações com programa de computador – software -, ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados” e também do § 6º do art. 6º, que aponta como base de cálculo “qualquer outra parcela debitada ao destinatário, inclusive o suporte informático, independentemente de sua denominação.

Similarmente, a ADI 5659, ajuizada pela Confederação Nacional de Serviços, alegou a inconstitucionalidade do Decreto estadual n° 46.877/2015-MG, e interpretação conforme do art. 5° da Lei n° 6.763/75; do art. 1°, I e II, do Decreto nº 43.080/2002, ambos de Minas Gerais; bem como do art. 2° da LC 87/96, a fim de excluir das hipóteses de incidência do ICMS as operações com software.

Segundo a maioria já formada, o tributo devido é o ISS, à luz da LC n. 116/2003, por se tratar de serviço, não de mercadoria. Há, contudo, proposta de adoção da modulação de efeitos da decisão, para “(…) dotá-la de eficácia a partir da data da publicação da ata de julgamento”. É sobre essa proposta de modulação que o presente texto trata.

O mistério da história não nos permitiu saber qual é o último passo da jornada em busca de uma vida coletiva civilizada. O primeiro, todavia, é conhecido: segurança jurídica.

O fracasso ou sucesso das nações se define pela capacidade que têm de construir um ambiente que anime nas pessoas a certeza do Direito, Direito esse que não precisa ser imutável, mas há de ser, no mínimo, previsível. É para isso que ele existe.

Na contemporaneidade, a Constituição de 1988 exorta o compromisso indeclinável com a segurança jurídica em matéria tributária, a ponto de a Seção II, do Capítulo I (Do Sistema Tributário Nacional) do Título VI (Da Tributação e do Orçamento) se dedicar exclusivamente às “Limitações do Poder de Tributar”. Limitar esse poder é a forma que do Constituinte de dizer: o poder de tributar não significa nem envolve o poder de destruir, como anotou, nos EUA, o Justice Oliver Wendell Holmes, Jr, sempre citado pelo ministro Celso de Mello.

O inciso I do art. 150, por exemplo, veda à União, aos Estados, ao DF e aos Municípios “exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”. E não é só.

As alíneas “a”, “b” e “c” do inciso III do art. 150 replicam tais vedações “a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”; “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”; e “antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b”.

São comandos reputados, pelo STF, cláusulas pétreas implícitas, e cuja finalidade é afastar quaisquer incursões estatais sobre o patrimônio dos contribuintes quando guiadas pelo norte da surpresa. A sabedoria da previsibilidade é insumo vital no Direito Tributário.

O art. 27 da Lei n. 9.868/99, diz que, “ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o STF, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. Por excepcional, a maioria é qualificada.

Ou seja, a razão de ser do instituto da modulação é a segurança jurídica. Não o contrário. A suplantação do princípio da nulidade da lei inconstitucional – decorrente da força normativa da Constituição – só se justifica se o que se busca é evitar efeitos tão dramáticos que corromperiam a própria Constituição e a Ordem Jurídica por ela fundada.

Logo, algumas interpretações, por impossíveis, devem ser afastadas da análise que o STF há de se fazer quanto à extensão da modulação proposta pelo ministro Dias Toffoli. Ela apenas veda a repetição do indébito em favor de quem, em MT ou MG, tenha recolhido, à luz da legislação vigente – agora inconstitucional – o ICMS. Nada mais.

Teria, a modulação eventualmente implementada pelo STF, o condão de autorizar que as Fazendas estaduais que ainda não tenham violado a Constituição cobrando o ICMS, agora o façam? Serviria para validar medidas ainda em curso, em MT e MG, que foram reputadas inconstitucionais, como autos de infração lavrados em favor da cobrança do ICMS? Haveria uma carta em branco para que todo o aparato estatal que não tivesse agido, esteja agora empoderado, pelo STF – guardião da Constituição, segundo o caput do art. 102 – para a cobrança retroativa de um imposto – o ICMS – que foi reputada inconstitucional?

A Constituição, a legislação de regência e a jurisprudência da Suprema Corte não apenas desautorizam tal conclusão como a dirigem ao campo do disparate exegético.

Nesse que é o século das cidades, e no tempo da economia digital, diante da rara oportunidade de vermos o município, enquanto ente da federação, conquistando sua autonomia financeira (art. 18 c/c art. 30, III, da Constituição), um conjunto de leis estaduais, estimuladas pelo CONFAZ, subverteram a lógica de reconhecer software como serviço e, de forma inconstitucional, buscaram impor a incidência do ICMS sobre eles. O Supremo derrubou essa iniciativa.

Daí que parece ser a única possibilidade em vista a de defender a rejeição da proposta de modulação e, alternativamente, uma interpretação restritiva – como é a praxe do STF –, no sentido de que constitui mera proibição da repetição de indébitos de ICMS por ventura recolhidos em MT ou MG.

 

*Saul Tourinho Leal é Doutor em Direito Constitucional, sócio de Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia e assessor jurídico da ABES

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